quarta-feira, 17 de agosto de 2011

CAPÍTULO IX


A revelação


A chuva ainda caía quando um caipira, vestido com cores fortes, deixou um prato fumegante sobre uma pequena mesa ao lado de Justin e saiu. O ladino estivera desmaiado por apenas algumas horas, mas parecera uma eternidade o tempo que permanecera trancado ali. Ainda se lembrava do temporal que caíra sobre sua cabeça, da imagem de seu pai lhe cobrando sua promessa e da dor. Perdera totalmente seus objetivos ao ter seu cérebro lacerado por aquela dor e agora tudo o que restava era torcer para que seus esforços não fossem em vão.
Desceu da rústica cama de madeira que adornava seu aposento e pegou o prato de comida que lhe deixaram. Apesar de sua cabeça ainda doer, não comera nada desde a noite anterior e seu estômago protestava de fome. Seu quarto de prisão não se parecia exatamente com uma cela. Era relativamente confortável e não havia grades, apenas uma grossa porta de madeira de carvalho e um espaço da parede, sem reboco, no lugar onde deveria haver uma janela
. Sua cama, apesar de simples, era macia e havia até um banheiro para quando a necessidade urgisse, mas mesmo assim ainda estava preso. Olhou ao redor, refletindo, enquanto depositava o prato vazio sobre a mezinha no canto do pequeno cômodo. Ainda estava muito fraco para tentar uma canção que o libertasse, mas em pouco tempo estaria recuperado e poderia por aquela parede abaixo. Seus captores deveriam saber disso, então era estranho que não o tivessem amordaçado ou algemado seus braços.
Ainda pensava com seus botões quando a porta se abriu e Mestre Matheus adentrou o cubículo. Usava uma toga colorida com detalhes em dourado e azul, mas sem a faixa que representava o cargo de Mestre. Abaixou a cabeça num cumprimento e se sentou na cama, ao lado do ladino.
– Espero que esteja sendo bem tratado – disse o Mestre sem demonstrar emoção na voz.
– Quão bem tratado eu poderia estar sendo, jogado nesta cela fétida e alimentado com algo entre comida de cachorro e bosta de neném?  – respondeu Justin com raiva. Estava revoltado por ter sido capturado tão facilmente e a presença do Mestre só fazia piorar as coisas.
Mestre Matheus sorriu.
– Você não é fácil de lidar mesmo não é?! Mestre Jeú me disse que não seria uma conversa amigável, mas eu não lhe dei ouvidos, como sempre. Veja, não há motivos para não convivermos amigavelmente, já que você terá que permanecer um bom tempo conosco, até pagar pelo seu crime.
– Por que não me entregaram as autoridades? Se cometi um crime devo pagar por ele da mesma maneira que todo criminoso comum. Por que me mantêm aqui?
– As coisas não funcionam dessa forma na GD – respondeu o Mestre – O que acontece aqui, resolve-se aqui, essas são as regras.
– Começo a entender a situação – zombou Justin – Se passam por honrados professores, preocupados em ajudar os pobres garotos ignorantes que buscam instrução aqui, quando na verdade usam esse lugar para satisfazer seus anseios de autoritarismo e dominação. Veja o que eu sinto pela suas regras – e cuspiu nos pés de Matheus.
– Você me lembra seu pai sabia? – disse o Mestre calmamente limpando o pé – A mesma raiva interior, a mesma ambição, mas seu pai não tinha esse sentimento de remorso, como se tivesse feito algo do qual não pudesse se perdoar.
– Há! – zombou Justin – Está enganado velho. Eu não sinto remorso. Nunca – mas no fundo estremeceu a menção de seu pai.
– Sua boca diz uma coisa, mas sua alma canta outra canção. Eu posso lê-la claramente. Não há necessidade de mentir – respondeu Matheus.
Justin recuou. Ouvira historias a respeito dos sábios e de como podiam ler a alma das pessoas, descobrindo seus mais íntimos segredos e dominando suas mentes, mas nunca os levara a sério. Lendas eram comuns no mundo dos magos e todas as classes gostavam de inventar histórias fantasiosas sobre si mesmas.
– Pode mesmo ler a mente das pessoas? – perguntou, temendo por seu segredo.
– Não posso ler mentes – respondeu Matheus sorrindo – apenas capto algumas projeções da alma das pessoas e consigo interferir em seus cérebros, projetando imagens, sons ou dor, como fiz com você. Mas não é uma leitura. Não sou nenhum professor Xavier.
– Quer dizer que não consegue saber o que estou pensando agora, nem o que já fiz no passado, ou quem sou eu.
– Com absoluta certeza não, mas sei quem é você. Seu pai já esteve aqui há algum tempo e, apesar de tê-lo visto apenas uma vez, e de longe, percebo a semelhança incrível que existe entre vocês. Sua freqüência cerebral, suas expressões neurais, são praticamente idênticas, você é como seu pai a dezoito anos atrás, apenas suas intenções são indecifráveis. Você parece que precisa fazer algo que não quer fazer.
– Isso não é ler a mente? – perguntou Justin, disfarçando com um sorriso amarelo.
– Não – respondeu Matheus sorrindo – Isso é percepção extra-sensorial, mas não é difícil descobrir o que você está pensando. O que um prisioneiro pensa se não em conseguir sua liberdade.
Justin confirmou com a cabeça. Não gostava de Matheus, mas se tinha que permanecer ali por um tempo era melhor não ter o Mestre como inimigo e ainda tinha testes a fazer, antes de ter certeza que o objeto adquirido era mesmo o verdadeiro.
– O que vai acontecer comigo? – perguntou tentando parecer ansioso.
– Obviamente você terá que trabalhar para pagar por seu crime. Há muito que fazer por aqui e precisamos de toda mão-de-obra disponível – Matheus sorriu quando ladino fez uma careta, como que insatisfeito com o destino que o aguardava – É isso ou permanecer nessa cela.
Justin fungou.
– Também terá que devolver o brinco – continuou Matheus – ou nos dizer onde o escondeu. Não o encontramos com você quando o socorremos.
– Eu o perdi na floresta quando você me atacou – e remexeu-se dolorosamente na cama, pousando a mão sobre a perna ferida – ainda deve estar por lá, em algum lugar.
Matheus assentiu com a cabeça. Não deixando claro se acreditava, ou não, na historia do ladino, mas como não disse mais nada, Justin quis acreditar que sim.
– É melhor você descansar agora e cuidar dessa perna – levantou-se para sair e colocou a mão sobre o ombro de Justin – Taylor virá em breve para lhe passar suas tarefas, esteja preparado – e saiu, fechando a porta atrás de si.
Justin deitou-se novamente preocupado. Não entendia por que o haviam costurado e enfaixado se seu ferimento não era tão grave e qualquer Mestre da água poderia curá-lo facilmente. Também não entendeu por que não estava algemado e amordaçado, afinal era um ladino e nenhuma prisão resistia a um ladino.
Dormiu o resto da tarde e a noite. No outro dia acordou cedo com o barulho de passos próximo a sua cela. Sua perna já não doía mais e o tempo finalmente melhorara. O som dos passos se intensificou, indicando que alguém estava chegando e Justin levantou e se vestiu para recebê-los.
– Bom dia – disse um rapaz indígena de grande estatura. Seu cabelo liso e cumprido, muito preto, caia sobre seus olhos e sua pele morena contrastava com sua toga azul clara. A presença da vestimenta indicava que o indígena tinha um cargo importante na GD – Sou Taylor Wind e fui encarregado pelo Mestre Matheus para coordenar seu trabalho.
Justin o encarou, olhando-o de cima a baixo.
– Você é um índio? – foi a resposta do ladino – O velhote encarregou um índio para cuidar de mim?! Só pode ser brincadeira!
O rapaz fechou a cara.
– Sou descendente de indígenas, do Brasil, e morava lá antes de vir estudar aqui na GD. Qual o seu problema com a minha raça? Sou tão capaz quanto qualquer um aqui.
– Isso deve fazer parte do castigo. Só pode – suspirou Justin – Certo bugrão, se não tem jeito, vamos lá. A que privilégio você pertence? Não é ladino espero?
– Não. Há apenas mais um ladino aqui além de você – O Grão Mestre Jeú – Eu pertenço ao vento. Sou um xamã11 em treinamento.
– Ah! Um mago selvagem. Eu devia ter adivinhado – e coçou a cabeça – Veja, eu não sei quais são suas intenções, mas já aviso que não estou aqui para fazer amigos, então basta me dizer o que tenho que fazer e me ignorar o restante do tempo ok.
– Se é isso que você quer, pra mim está ótimo – respondeu Taylor – vamos andando que há muito que fazer – e abriu a cela liberando à Justin o acesso para o restante do prédio.
Do lado de fora da cela o prédio era enorme. Só o corredor onde estavam devia ter uns cinqüenta metros e, após a curva, ele continuava por outro tanto. A cada intervalo de 10 passos, uma porta de madeira indicava que havia uma cela por trás e, ao lado das portas, pequenos círculos escavados na rocha convidavam os visitantes a se manterem afastados.
– Você tem um cigarro? – perguntou Justin quebrando o silêncio.
– Eu não fumo, e você também não deveria.
Justin riu.
– O que há com esse lugar? É proibido usar magia? Deve ser para terem medo dos efeitos do cigarro.
– Não é possível usar magia nesse prédio.
– Por que não?
– Achei que não queria falar comigo – respondeu Taylor.
Justin fechou a cara e continuou atrás do xamã. Caminharam mais alguns metros e chegaram num grande pátio, repleto de mesas e bancos de madeira. Do lado esquerdo, perto da porta de saída, outra repartição, semelhante a uma cozinha, fechava o complexo. O lugar lembrava um hospital medieval e Justin reparou, pela quantidade de mesas e pelo tamanho da cozinha, que devia ter muitos internos ali, mas seria ridículo um hospital num centro mágico importante como a GD.
Saíram do prédio e Justin pode sentir o vento fresco que soprava e balançava os feixes das plantações que cobriam o campo, atraindo nuvens de pássaros que desciam sobre as plantas e disputavam as melhores espigas. Alguns rapazes tentavam espantá-los com varas e estilingues, mas as aves teimavam em retornar.
Ao redor da academia principal a movimentação era intensa. Aprendizes e Companheiros se dividiam em grupos e se dirigiam para suas ocupações diárias, e Justin reparou que os Mestres não participam dos trabalhos, mas se divertiam jogando um jogo de tabuleiro, parecido com o xadrez e que era muito comum nos círculos mágicos, porém, guardou a informação para questionar Matheus mais tarde.
 Chegaram ao armazém e Taylor chamou um rapaz que Justin reconheceu como o mesmo que ele havia roubado a aparência no dia anterior. O rapaz se assustou ao revê-lo, mas Taylor o acalmou.
– Não se preocupe Michel. Ele está sob a guarda do Mestre Matheus. Não há o que temer.
O rapaz pareceu ficar mais tranqüilo e entraram no armazém conversando. Justin pensou se a oportunidade seria interessante para uma fuga, mas com certeza Matheus o estaria vigiando e o afetaria novamente. Não. É melhor esperar até a noite, quando todos estiverem dormindo, pensou enquanto examinava a situação ao redor. A maioria dos aprendizes pareciam evitar seu olhar, o que deu a Justin certa sensação de poder, como se todos o temessem, mas reparou que uma mocinha com traços indígenas o encarava, como se não aprovasse sua estadia ali.
Taylor voltou logo depois, trazendo um bornal e um cajado e o entregou a Justin que o recebeu surpreso.
– Hoje você vai trabalhar nos campos, espantando as aves e os roedores. Amanhã cuidará dos animais e depois, ajudará no sanatório. Seguirá a mesma rotina todos os dias, até que os Mestres decidam que sua dívida com a GD está paga.
Justin ia abrir a boca para reclamar, mas sabia que precisava de um tempo a sós para experimentar sua nova aquisição e o campo seria perfeito. Pensando assim seguiu Taylor até o campo e, depois de receber instruções, foi deixado a sós com seus instrumentos e com as aves que pairavam sobre a área de cultivo.
– Pronto! Agora fui promovido a um maldito espantalho – resmungou Justin para si, e começou a enxotar os pássaros que iam e voltavam conforme ele se retirava.
– Pro inferno com esse serviço. Vou resolver isso do meu jeito – e abaixou-se e começou a desenhar, com o cajado, um circulo no chão. Uma luz turva e amarronzada seguia o trajeto do cajado e formava o círculo, formando um espetáculo curioso em meio a plantação. Terminou o círculo e apanhou um punhado de espigas da plantação, depositando-as sobre o círculo. Fechou os olhos e recitou lentamente:

XLIII CANÇÃO DO LIVRO MARROM

A terra tremeu levemente e fumaça subiu do circulo quando Justin abriu os olhos. A pupila estava dilatada e o branco totalmente coberto, formando uma aparência curiosa. Colocou uma pena de um pássaro sobre o círculo e iniciou o canto;

Caminho traçado, restrito alcance;
Limite florido, fuga, sem chance;
Círculo escuro, as vidas devoram;
Nascidos da terra, pra terra retornam.

Arco marrom, erguendo-se ao léu;
Mudança completa, expurgo no céu;
A fauna e a flora, no mesmo endereço;
Fim da labuta, eu reconheço.

A terra se abriu, liberando mais fumaça e engoliu as oferendas, liberando raios de luz escura que se espalharam pelo campo e subiram aos céus, envolvendo os pássaros que se debatiam e caiam mortos aos pés do ladino.
– Agora não vão mais incomodar – disse Justin sorrindo – Não sei como ninguém pensou nisso antes – e sentou no chão, visivelmente estafado ao lado de algumas aves que ainda se estrebuchavam – Cá posso me preocupar com coisas mais importantes – e repuxou a calça exibindo o ferimento que teimava em não sarar.
– É uma pena, mas vou ter que abri-la novamente perna – e pegou o canivete que estava no bornal e cortou os pontos, abrindo novamente a ferida com uma expressão de dor. Um fiapo de sangue escorreu do corte quando Justin enfiou o dedo e arreganhou o machucado, expondo um objeto brilhante que se escondia sob a dobra da pele.
– Aí está você maldito – e retirou o brinco ensangüentado, limpando-o na calça. O objeto lhe trouxe profundas recordações e Justin não pode impedir as lagrimas de rolaram de seus olhos – Esse é o começo pai – disse em voz baixa, e secou as lagrimas com a costa da mão.
O objeto não era necessariamente um brinco. Apesar de seu formato semelhante, era uma pequena estrela de seis pontas com uma argola saindo da ponta maior e emitia um tênue brilho dourado quando o sol reluzia em sua direção. Possuía algumas inscrições em alguma língua desconhecida e apesar de estar em perfeito estado, dava a impressão de ser muito antigo.
– Até que enfim vou usá-lo – disse Justin retirando o brinco que usava e colocando o outro em seu lugar, esperando que um portal se abrisse, mas não houve resultado algum. Tentou usá-lo de outras formas, mas todas as tentativas foram em vão e o brinco apenas emitia um pequeno calor em contato com a pele.
– Maldito artefato. Qual será a maneira correta de usá-lo? – resmungou de mau humor e retirou o brinco, guardando-o no bolso da calça. Seu ferimento aberto começou a incomodá-lo e sabia que precisaria de cuidados se não quisesse pegar uma infecção – Deve ser por isso que tem um hospital aqui – pensou em voz alta – Para ajudar magos burros como eu que não conhecem nenhuma magia de cura – e riu de sua desgraça.
Rasgou uma tira da camisa e amarrou na perna para estancar o sangramento e, levantava-se para voltar para a sede, quando uma voz conhecida chamou sua atenção.
– O que houve com os pássaros – perguntou Taylor se aproximando.
– Ah? Os pássaros? Eu os matei – disse o se recompondo – Agora não vão mais incomodar.
– Você os matou?! Com ordem de quem? Sua tarefa era espantá-los, não matá-los. Mestre Matheus não gosta que nenhuma vida seja desperdiçada inutilmente.
– Não foi inutilmente – retrucou Justin – Eles estavam comendo a plantação. Agora não vão comer mais. E não me venha com essa falsa compaixão. Eles iam morrer mais cedo ou mais tarde mesmo, comendo esse milho de quinta categoria.
– Saiba que Mestre Matheus ficará sabendo disso. E já que você terminou seu serviço mais cedo, pode cuidar dos animais nos currais, e depois me ajudar com os pacientes do Hospital. Ainda temos muito a fazer até o por do sol.
– Você pode fazer o que quiser, mas eu não farei nada enquanto não cuidar dessa perna. Meu ferimento abriu e esta doendo pra diabo.
– Deixe me ver isso – disse Taylor desamarrando a faixa – Que porcaria você fez aqui? Parece que abriu o ferimento de propósito.
Justin puxou a perna.
– Que espécie de idiota você pensa que sou para abrir o ferimento de propósito. Eu caí enquanto corria atrás dos pássaros e aconteceu isso aí. Não tive culpa.
– Hum! Por isso você quis se vingar matando os pássaros não é. Isso não justifica. Eles não tiveram culpa de você ser descuidado – e lançou-lhe um olhar de censura antes de pegar em seu braço e apoiá-lo – Vamos. Eu te ajudo a chegar ao hospital.
Justin não teve remédio a não ser acompanhar o xamã que ia resmungando o caminho todo que toda vida era importante e mesmo os pássaros causando prejuízos não mereciam a morte. Justin agüentou a conversa até chegar ao seu quarto e ter seu ferimento tratado, depois o despachou com a desculpa que queria dormir e tirou o brinco para dar mais uma olhada.
– Mais cedo ou mais tarde vou descobrir como você funciona brinco devasso – disse para si mesmo – e então o mundo será meu – e gargalhou por alguns instantes, deitando se na cama e esticando a perna ferida que teimava em latejar.
No outro dia, já com a perna melhor, foi levado por Taylor para os currais e teve que alimentar o gado e ordenhar as vacas e cabras e escovar os cavalos. Chegou a pensar em usar um rito para se livrar novamente do serviço, mas não conhecia nenhum que fizesse aquilo, então teve que trabalhar. Quando terminou o serviço nos currais, foi levado para os chiqueiros, onde alimentou os porcos e lavou as instalações. No final do dia estava tão exausto que nem esperou o jantar. Caiu na cama e desmaiou.
Acordou no outro dia com uma voz feminina do outro lado da cela. Abriu os olhos e Taylor estava abrindo a porta, acompanhado de uma moça, com traços indígenas, a mesma que o encarara quando fora buscar as ferramentas no depósito e não parecia feliz em estar ali, naquele momento.
– Por que tenho que trabalhar com ele. É um ladino e tentou roubar a GD – disse a moça sem se preocupar que Justin pudesse ouvir.
– São ordens do Mestre e ele não é tão ruim assim. Cuidou muito bem dos animais ontem – respondeu Taylor desviando o olhar.
– Pois eu fiquei sabendo que ele matou todos os pássaros do campo para não ter que afugentá-los e só não matou os animais do curral por que você estava vigiando.
– Isso não é verdade – emendou Taylor – Quer dizer, a parte dos pássaros sim, mas mesmo assim... Bem esqueça. O Mestre Matheus ordenou e não devemos questionar suas ordens. Você sabe disso.
– Bom dia pra vocês também – disse Justin entrando na conversa – Sempre fico feliz em ser o assunto mais comentado do momento – e sentou-se na cama – Aonde vão me escravizar hoje?
– Bom dia Justin – respondeu Taylor – Essa é minha irmã Nayara Wind. A partir de amanhã você poderá se mudar para os dormitórios e ela será sua companheira de quarto e o ajudará a se adaptar à vida na GD. Mestre Matheus ficou impressionado com seu esforço ontem e decidiu lhe dar uma nova chance. Vai conviver com os aprendizes e terá aulas com os Mestres, e se for aplicado poderá se tornar um Companheiro como eu e até um Mestre como o Mestre Matheus. Mas terá que continuar a realizar suas tarefas. Todos temos que colaborar para o bom funcionamento e manutenção da GD.
Justin tentou não demonstrar surpresa, mas não esperava por aquilo. Fazia poucos dias que estava preso e trabalhando e esperava ficar um bom tempo assim, antes de conquistar a confiança dos Mestres. Sabia que homens e mulheres compartilhavam os dormitórios na GD e ainda se lembrava do banho que tomara com a garota indiana, dessa vez, porém, ficaria com a irmã do xamã e ela não parecia muito satisfeita com isso. Levantou-se e tentou sorrir para ela, mas a garota estava com a cara amarrada e não parecia disposta a concordar.
– Eu não vou dormir com um ladino. E se ele me atacar à noite? – disse a moça olhando para o irmão.
– Ele não vai te atacar. Mestre Matheus me garantiu isso – A moça não parecia se contentar e encarou Justin com raiva no olhar.
– Se você tentar algo comigo eu corto seu pinto – e fez sinal com as mãos indicando o corte – Corto e jogo pros porcos. Eles vão adorar. Eles comem de tudo sabia?
Justin recuou. Nayara não devia ter mais que treze anos, mas era moça formada, com belas pernas e formas arredondadas. Sua pele morena combinava com seus longos cabelos negros e os olhos, grandes e amendoados, conferiam-lhe um ar inocente. Dessa vez, porém, a moça parecia falar serio e o ladino preferiu agir como se a moça não fosse importante.
– Não tenho interesse nenhum em você. Pode ficar sossegada. Gosto de mulheres civilizadas.
A garota quase pulou sobre ele ao ouvir isso. E só se conteve quando o irmão a puxou para trás e segurou seus braços firmemente.
– Me solte! – disse para o irmão – Vou mostrar a ele quem não é civilizada.
– Justin – disse Taylor – Não fique provocando a Nayara está bem. Ela não tem muita paciência e vocês vão trabalhar juntos a partir de amanhã. Mestre Matheus quer que vocês passem a cuidar dos pacientes e eles ficam sensíveis quando percebem alterações de humor.
– Quem são esses pacientes? – perguntou Justin mudando de assunto – Vocês não têm nenhum druida aqui que posso cuidar dos doentes? 
– Não são doentes comuns – respondeu Taylor – São magos com problemas mentais. Pessoas que passaram por algum trauma muito forte ou não conseguiram aceitar suas responsabilidades e acabaram aqui e não há cura para os males da alma. Nem mesmo Mestre Matheus pode reverter isso.
– Eu não quero trabalhar com ele – disse Nayara inconformada, chamando a atenção para si – Prefiro cuidar dos porcos.
– Não vou ouvir mais nada sobre isso Nay. Você concordou em obedecer quando aceitei trazê-la comigo.
A moça ainda resmungou um pouco, mas acabou aceitando. Sabia que não podia contrariar a ordem de um Mestre e seu irmão estava determinado a lembrá-la disso – Ok então. Depois não diga que não avisei – e virou as costas e saiu sem olhar para trás.
– Acho que ela não gosta mesmo de mim – disse Justin olhando o movimento do quadril da moça enquanto ela se afastava.
– A Nayara é desconfiada assim mesmo. Com o tempo ela vai aprender a gostar de você. Não se preocupe.
O diálogo estava ficando muito pessoal e Justin não gostava de compartilhar sentimentos, então mudou o rumo da conversa para sua tarefa do dia seguinte.
– Esses loucos que você disse. Ainda não vi nenhum por aqui. Onde eles estão?
– Estão nas celas – respondeu Taylor – Só saem para comer e tomar sol, mas não ficam muito tempo livres, a magia de retenção pode falhar e seria muito perigoso se um paciente usasse um ritual aqui.
– Como assim? Eles são loucos não são?!
– Os pacientes têm variados graus de insanidade, mas são magos e podem usar magia, e seria perigoso para eles próprios e para os demais se invocassem um círculo e fizessem um ritual de troca. Por isso o hospital é selado. Não se pode usar magia aqui dentro. Um Grão Mestre do passado – Alek Rose – cobriu esse local com um selo perpetuo que não permite que o ritual se concretize, deixando os internos, e a nós também, indefesos.
– Hum! Entendi – respondeu Justin percebendo o porquê de o terem trancado lá: considerando que a historia do xamã fosse verdade, mesmo que ele não estivesse fraco não poderia usar um ritual para fugir e, se tentasse, de alguma forma eles descobririam.
– Bom. Já falei demais. Hoje você vai limpar os banheiros daqui e da sede. É sua última tarefa com prisioneiro. Amanhã você começa a trabalhar como aprendiz. Vou te esperar lá fora enquanto você se troca, não demore!
Grande diferença – pensou Justin enquanto vestia o uniforme de trabalho: um conjunto laranja de manga curta e cintura apertada. E agora vou ter que limpar a merda da GD toda. Só pode ser brincadeira – e saiu atrás de Taylor.
Lá fora o dia estava nublado e um vento frio soprava do leste, arrepiando os pêlos dos braços do ladino e fazendo-o encolher. Taylor percebeu e pediu a um aprendiz que passava por ali, para buscar um casaco para Justin e entregar a ele no banheiro dos Mestres, na sede. O rapaz deu meia-volta e desapareceu em direção aos dormitórios enquanto o xamã tentava puxar conversa com o ladino.
– Não sei qual o seu grau de conhecimento, mas aprende-se muito aqui. Tenho certeza que você vai gostar.
– Estranho! – respondeu Justin cortando o assunto – Sempre aprendi que os xamãs são briguentos e irresponsáveis, tipo sua irmã, mas você é diferente. Por quê?
Taylor riu.
– Essa é a definição dos círculos Justin. Na GD tudo é diferente. Aqui aprendemos que tudo o que fazemos tem conseqüências. Boas ou ruins. Se fizermos coisas boas. Coisas boas aconteceram conosco. Por outro lado, se agirmos de forma egoísta. Assim também será o resultado. Nosso grão-Mestre Jeú desenvolveu essa filosofia em seu primeiro ano aqui e foi a primeira coisa que implantou quando assumiu a GD. Não há lugar para intrigas e maquinações aqui. Nayara ainda é nova, mas ela também vai aprender isso – e virou-se para Justin – e você também.
Eu não – pensou Justin, mas manteve para si.
Chegaram aos banheiros e Taylor deixou o ladino e foi cuidar de suas obrigações. Justin se irritou ao ver a situação dos toaletes. Estavam inundados e com absorventes usados espalhado por todos os lados. As privadas pareciam não estar funcionando há anos e dejetos e restos de papel higiênico flutuavam no liquido escuro formando uma sopa espessa e malcheirosa.
– Que merda! – xingou em voz alta – A quanto tempo será que ninguém limpa essa porcaria?
Passou o dia limpando banheiros e lavando toalhas. Felizmente os demais não estavam no mesmo estado do primeiro e o serviço foi mais tranqüilo. No final do dia tomou um banho e se recolheu a sua cela, cansado, mas na expectativa de testar a veracidade da história sobre magia ali. Pensando assim, abaixou as mãos, cruzando-as e formando um circulo estrelado. Fechou os olhos rapidamente e recitou.

XXVI Canção do Livro Marrom

Abriu os olhos e ergueu as mãos. Um crack indicou que algo se quebrara e luz turva começou a emanar da rachadura, iluminando a cela escura. O ladino sorriu satisfeito e começou a executar o canto.

Da pedra o sustento, da terra o...

Sentiu a garganta trancar e a língua enrolar na boca. Tentou gritar, mas a voz não saiu. A língua começou a inchar e preencheu todo o espaço de sua boca, fazendo com que sufocasse. O oxigênio começou a faltar em seu cérebro e por instantes achou que ia morrer, mas a porta da cela se abriu e Nayara entrou correndo e abriu sua boca, puxando sua língua e liberando a entrada de ar.
– SEU IDIOTA! – disse a moça exasperada – MEU IRMÃO NÃO DISSE QUE NÃO PODIA USAR MAGIA AQUI?
Justin inspirou profundamente e teve um acesso de tosse, caindo sobre a cama. A língua aos poucos começou a desinchar e permitiu que ele falasse.
Sisse, mas eu queria tser certesza – respondeu com a língua ainda meio inchada – Que drroga.
– Eu devia tê-lo deixado morrer pra você aprender.
Obrigzado! Err... pozr não me deixarr morrerr. Até quandzo eu vou ficar com a língua azim?
– Deve voltar ao normal em poucas horas. E que isso lhe sirva e lição. Quanta inconseqüência – e virou-se para sair – E agora vá dormir que amanhã cedo começa seu turno.
Obrigzado Nobamente!
Demorou a dormir, pensando no que havia acontecido, mesmo assim acordou cedo no outro dia e foi se vestiu para o trabalho, mas Nayara chegou e o mandou trocar de roupa.
– Agora você não é mais um prisioneiro. Pode usar sua roupa normal.
Justin sorriu, não porque poderia usar sua roupa normal, mas sim por que Nayara estava extremamente linda. Usava uma calça de couro marrom, bem justa, e um top vermelho que destacava seus pequenos seios. Um colar de conchas adornava seu busto e, nos pés, botas pretas de salto alto fechavam o conjunto. O cabelo, negro e liso, estava preso num rabo de cavalo e pela primeira vez, desde que a conhecera, estava maquiada.
– O que foi? – disse ela sorrindo e estranhando a cara de bobo de Justin.
– Err... Nada não, vou me trocar e já te alcanço.
A moça concordou com a cabeça e saiu enquanto Justin vestia rapidamente sua roupa comum e saia apressadamente atrás dela.
Passaram pelo corredor central enquanto conversavam sobre o hospital. Nayara contou que um Mestre do espírito havia, há muito tempo, conjurado um ritual para impedir que os internos usassem magia ali dentro, e evitar possíveis acidentes – Os pacientes – dizia ela – não discernem as coisas e agem por impulso, logo, não têm consciência das conseqüências de seus atos e por isso são muito perigosos. Um ritual executado por um mago desequilibrado pode ter resultados catastróficos. Tem até uma piada – continuou ela – de um alquimista que, louco, matou seu melhor amigo e usou seu cérebro num ritual em troca da sanidade, porém, ao se curar e constatar o que havia feito ficou louco de novo. É uma piada besta, mas no leva a pensar sobre os perigos do uso incorreto da magia – Apesar de já ter ouvido a mesma historia por Taylor, Justin ouvia tudo de boca aberta e começava a entender a realidade do lugar. Porém um fato chamou sua atenção.
– Como você percebeu o que se passava comigo ontem? Por acaso estava me vigiando? – perguntou interrompendo a moça.
– De certa forma sim – respondeu Nayara – na verdade todos os internos são vigiados. Existem câmeras de segurança em todas as celas e fazemos plantão para cuidar que ninguém faça alguma besteira.
O ladino se preparava para protestar quando encontraram Mestre Matheus. Nayara fez uma referencia e Justin a acompanhou da melhor forma possível.
 – Bom dia meninos – disse Matheus saudando-os.
– Bom dia Mestre – respondeu Nayara – estava levando Justin para seu primeiro dia de trabalho no hospital.
– Que ótimo Nay, mas infelizmente Mestre Jeú me pediu pessoalmente que encaminhasse Justin para seu gabinete. Ele o quer tomando conta de suas necessidades e acredita que um ladino conseguira melhor auxiliá-lo na administração.
Nayara fez cara de decepção, mas logo se recompôs e sorriu para Matheus.
– Claro Mestre, não tem problema, vou procurar outra pessoa para me ajudar. Até mais – e saiu apressadamente.
– Parece que vocês estavam se dando bem – disse Matheus assim que Nayara desapareceu.
– É. Estávamos. Por que o velhote me quer ajudando-o? Deve ter muitos aprendizes ou Companheiros mais capacitados que eu.
– Não sei, mas acredito que ele se vê refletido em você, por isso quer ajudá-lo. Vamos não devemos deixá-lo esperando.
Justin seguiu Matheus a contragosto e logo chegaram à sala do Mestre. Era a mesma sala onde ele estivera dias atrás roubando o brinco devasso, mas agora o Grão-mestre não estava sozinho: cinco pessoas, todas elas Mestres, incluindo duas mulheres discutiam com Jeú sobre os rumos que a GD tomaria dali em diante. Ao perceberem a chegada dos dois, todos se levantaram e se despediriam, deixando apenas o velho, Matheus e Justin no aposento.
O velho recebeu Matheus com um abraço e o convidou a sentar, enquanto ordenou a Justin que limpasse os artefatos e tirasse o pó das estantes.
– Tive aquele sonho novamente Mestre – disse Matheus sentando-se na cadeira – mas dessa vez parecia que o final seria diferente.
Jeú o encarou com seus olhos vazios e tomou um gole da bebida que estava sobre a mesa, esperando que ele começasse a narrativa. Matheus entendeu a deixa e respirou fundo, criando expectativa para a história que ia contar.
Sonhei com uma grande batalha – começou o sábio – que começava na terra, passava pelo fogo e terminava no espaço e da qual todos os elementos faziam parte. Almas, espíritos, fogo, água, terra, luz, etc. Todos se concentravam e se uniam ao redor de uma grande bola de energia escura, que subia aos céus e desaparecia, vindo novamente a surgir em um lugar distante, amplo e iluminado, onde dois deuses, um velho e um jovem, se enfrentavam e despedaçavam o universo aos seus pés, lutando entre corpos sem vida de anjos e homens. Vi ainda uma sombra que se levantava do túmulo e se unia a uma serpente coroada, como se uma fosse a vestimenta da outra e elas portavam a resposta para uma pergunta incompreensível. Vi alma e espírito, caminhando lado a lado e cantando uma canção de esperança. Vi a derrota fugindo e júbilo e alegria tomando conta da multidão, em meio a um fogo que subia da terra e iluminava o céu, levando justiça e liberdade para todas as pessoas do mundo, enquanto se enrolava, definitivamente, o manto celeste e infinito do Criador.
– Infelizmente acordei antes do final e isso me deixou ainda mais confuso sobre o sentido dessa revelação – concluiu, olhando Jeú nos olhos – Gostaria da sua opinião Mestre.
O velho pigarreou.
– Eu já vivi muito tempo e cometi mais erros do que seria permitido a uma pessoa cometer – começou Jeú, sacudindo as mãos e virando os olhos, como se tentasse afastar as lembranças – então talvez não seja a pessoa mais indicada para lhe dizer isso, embora o faça de qualquer maneira: não há, nesse tempo, mais espaço para a relutância e a covardia. Os sinais são tão claros que até um cego com eu posso vê-los. Meu conselho é que você faça o que tem que ser feito, mesmo que isso custe a alegria ou mesmo a existência de todas as pessoas que lutamos até hoje para proteger. Já adiei demais essa decisão e, mesmo que eu não consiga apagar os erros do passado, talvez consiga corrigir as injustiças do futuro. E você Matheus, fará parte disso. Onde falhei, você triunfará. Onde hesitei, você decidirá – e tossiu, cobrindo a boca com as mãos – Confio a você a nossa sorte, como antes confiaram a mim, e o conclamo senhor e guardião de nosso destino. Nosso e o de toda a humanidade.
Matheus abaixou a cabeça e Jeú tocou seu ombro, como se o estivesse consagrando e investindo com uma missão, enquanto Justin, que ouvia tudo com atenção, virou-se para a parede e sorriu seu sorriso de lobo. Do lado de fora os sinos tocavam e os alunos e Mestres celebravam e gritavam:
– MATHEUS É O NOVO GRÃO-MESTRE DA GD.


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