A revelação
A chuva ainda caía quando um caipira, vestido com cores fortes, deixou um
prato fumegante sobre uma pequena mesa ao lado de Justin e saiu. O ladino estivera
desmaiado por apenas algumas horas, mas parecera uma eternidade o tempo que
permanecera trancado ali. Ainda se lembrava do temporal que caíra sobre sua
cabeça, da imagem de seu pai lhe cobrando sua promessa e da dor. Perdera
totalmente seus objetivos ao ter seu cérebro lacerado por aquela dor e agora
tudo o que restava era torcer para que seus esforços não fossem em vão.
Desceu da rústica cama de madeira que adornava seu aposento e pegou o
prato de comida que lhe deixaram. Apesar de sua cabeça ainda doer, não comera
nada desde a noite anterior e seu estômago protestava de fome. Seu quarto de
prisão não se parecia exatamente com uma cela. Era relativamente confortável e
não havia grades, apenas uma grossa porta de madeira de carvalho e um espaço da
parede, sem reboco, no lugar onde deveria haver uma janela
. Sua cama, apesar de
simples, era macia e havia até um banheiro para quando a necessidade urgisse,
mas mesmo assim ainda estava preso. Olhou ao redor, refletindo, enquanto
depositava o prato vazio sobre a mezinha no canto do pequeno cômodo. Ainda
estava muito fraco para tentar uma canção que o libertasse, mas em pouco tempo
estaria recuperado e poderia por aquela parede abaixo. Seus captores deveriam
saber disso, então era estranho que não o tivessem amordaçado ou algemado seus
braços.
Ainda pensava com seus botões quando a porta se abriu e Mestre Matheus
adentrou o cubículo. Usava uma toga colorida com detalhes em dourado e azul,
mas sem a faixa que representava o cargo de Mestre. Abaixou a cabeça num
cumprimento e se sentou na cama, ao lado do ladino.
– Espero que esteja sendo bem tratado – disse o Mestre sem demonstrar emoção
na voz.
– Quão bem tratado eu poderia estar sendo, jogado nesta cela fétida e
alimentado com algo entre comida de cachorro e bosta de neném? – respondeu Justin com raiva. Estava revoltado
por ter sido capturado tão facilmente e a presença do Mestre só fazia piorar as
coisas.
Mestre Matheus sorriu.
– Você não é fácil de lidar mesmo não é?! Mestre Jeú me disse que não
seria uma conversa amigável, mas eu não lhe dei ouvidos, como sempre. Veja, não
há motivos para não convivermos amigavelmente, já que você terá que permanecer
um bom tempo conosco, até pagar pelo seu crime.
– Por que não me entregaram as autoridades? Se cometi um crime devo pagar
por ele da mesma maneira que todo criminoso comum. Por que me mantêm aqui?
– As coisas não funcionam dessa forma na GD – respondeu o Mestre – O que
acontece aqui, resolve-se aqui, essas são as regras.
– Começo a entender a situação – zombou Justin – Se passam por honrados
professores, preocupados em ajudar os pobres garotos ignorantes que buscam
instrução aqui, quando na verdade usam esse lugar para satisfazer seus anseios
de autoritarismo e dominação. Veja o que eu sinto pela suas regras – e cuspiu
nos pés de Matheus.
– Você me lembra seu pai sabia? – disse o Mestre calmamente limpando o pé
– A mesma raiva interior, a mesma ambição, mas seu pai não tinha esse
sentimento de remorso, como se tivesse feito algo do qual não pudesse se
perdoar.
– Há! – zombou Justin – Está enganado velho. Eu não sinto remorso. Nunca
– mas no fundo estremeceu a menção de seu pai.
– Sua boca diz uma coisa, mas sua alma canta outra canção. Eu posso lê-la
claramente. Não há necessidade de mentir – respondeu Matheus.
Justin recuou. Ouvira historias a respeito dos sábios e de como podiam
ler a alma das pessoas, descobrindo seus mais íntimos segredos e dominando suas
mentes, mas nunca os levara a sério. Lendas eram comuns no mundo dos magos e
todas as classes gostavam de inventar histórias fantasiosas sobre si mesmas.
– Pode mesmo ler a mente das pessoas? – perguntou, temendo por seu
segredo.
– Não posso ler mentes – respondeu Matheus sorrindo – apenas capto
algumas projeções da alma das pessoas e consigo interferir em seus cérebros,
projetando imagens, sons ou dor, como fiz com você. Mas não é uma leitura. Não
sou nenhum professor Xavier.
– Quer dizer que não consegue saber o que estou pensando agora, nem o que
já fiz no passado, ou quem sou eu.
– Com absoluta certeza não, mas sei quem é você. Seu pai já esteve aqui há
algum tempo e, apesar de tê-lo visto apenas uma vez, e de longe, percebo a
semelhança incrível que existe entre vocês. Sua freqüência cerebral, suas
expressões neurais, são praticamente idênticas, você é como seu pai a dezoito
anos atrás, apenas suas intenções são indecifráveis. Você parece que precisa
fazer algo que não quer fazer.
– Isso não é ler a mente? – perguntou Justin, disfarçando com um sorriso
amarelo.
– Não – respondeu Matheus sorrindo – Isso é percepção extra-sensorial, mas
não é difícil descobrir o que você está pensando. O que um prisioneiro pensa se
não em conseguir sua liberdade.
Justin confirmou com a cabeça. Não gostava de Matheus, mas se tinha que
permanecer ali por um tempo era melhor não ter o Mestre como inimigo e ainda
tinha testes a fazer, antes de ter certeza que o objeto adquirido era mesmo o
verdadeiro.
– O que vai acontecer comigo? – perguntou tentando parecer ansioso.
– Obviamente você terá que trabalhar para pagar por seu crime. Há muito
que fazer por aqui e precisamos de toda mão-de-obra disponível – Matheus sorriu
quando ladino fez uma careta, como que insatisfeito com o destino que o
aguardava – É isso ou permanecer nessa cela.
Justin fungou.
– Também terá que devolver o brinco – continuou Matheus – ou nos dizer
onde o escondeu. Não o encontramos com você quando o socorremos.
– Eu o perdi na floresta quando você me atacou – e remexeu-se
dolorosamente na cama, pousando a mão sobre a perna ferida – ainda deve estar
por lá, em algum lugar.
Matheus assentiu com a cabeça. Não deixando claro se acreditava, ou não,
na historia do ladino, mas como não disse mais nada, Justin quis acreditar que
sim.
– É melhor você descansar agora e cuidar dessa perna – levantou-se para
sair e colocou a mão sobre o ombro de Justin – Taylor virá em breve para lhe
passar suas tarefas, esteja preparado – e saiu, fechando a porta atrás de si.
Justin deitou-se novamente preocupado. Não entendia por que o haviam
costurado e enfaixado se seu ferimento não era tão grave e qualquer Mestre da
água poderia curá-lo facilmente. Também não entendeu por que não estava
algemado e amordaçado, afinal era um ladino e nenhuma prisão resistia a um
ladino.
Dormiu o resto da tarde e a noite. No outro dia acordou cedo com o
barulho de passos próximo a sua cela. Sua perna já não doía mais e o tempo
finalmente melhorara. O som dos passos se intensificou, indicando que alguém
estava chegando e Justin levantou e se vestiu para recebê-los.
– Bom dia – disse um rapaz indígena de grande estatura. Seu cabelo liso e
cumprido, muito preto, caia sobre seus olhos e sua pele morena contrastava com
sua toga azul clara. A presença da vestimenta indicava que o indígena tinha um
cargo importante na GD – Sou Taylor Wind e fui encarregado pelo Mestre Matheus
para coordenar seu trabalho.
Justin o encarou, olhando-o de cima a baixo.
– Você é um índio? – foi a resposta do ladino – O velhote encarregou um
índio para cuidar de mim?! Só pode ser brincadeira!
O rapaz fechou a cara.
– Sou descendente de indígenas, do Brasil, e morava lá antes de vir
estudar aqui na GD. Qual o seu problema com a minha raça? Sou tão capaz quanto
qualquer um aqui.
– Isso deve fazer parte do castigo. Só pode – suspirou Justin – Certo bugrão, se não tem jeito, vamos lá. A que
privilégio você pertence? Não é ladino espero?
– Não. Há apenas mais um ladino aqui além de você – O Grão Mestre Jeú – Eu
pertenço ao vento. Sou um xamã11
em treinamento.
– Ah! Um mago selvagem. Eu devia ter adivinhado – e coçou a cabeça –
Veja, eu não sei quais são suas intenções, mas já aviso que não estou aqui para
fazer amigos, então basta me dizer o que tenho que fazer e me ignorar o
restante do tempo ok.
– Se é isso que você quer, pra mim está ótimo – respondeu Taylor – vamos
andando que há muito que fazer – e abriu a cela liberando à Justin o acesso
para o restante do prédio.
Do lado de fora da cela o prédio era enorme. Só o corredor onde estavam
devia ter uns cinqüenta metros e, após a curva, ele continuava por outro tanto.
A cada intervalo de 10 passos, uma porta de madeira indicava que havia uma cela
por trás e, ao lado das portas, pequenos círculos escavados na rocha convidavam
os visitantes a se manterem afastados.
– Você tem um cigarro? – perguntou Justin quebrando o silêncio.
– Eu não fumo, e você também não deveria.
Justin riu.
– O que há com esse lugar? É proibido usar magia? Deve ser para terem
medo dos efeitos do cigarro.
– Não é possível usar magia nesse prédio.
– Por que não?
– Achei que não queria falar comigo – respondeu Taylor.
Justin fechou a cara e continuou atrás do xamã. Caminharam mais alguns
metros e chegaram num grande pátio, repleto de mesas e bancos de madeira. Do
lado esquerdo, perto da porta de saída, outra repartição, semelhante a uma
cozinha, fechava o complexo. O lugar lembrava um hospital medieval e Justin
reparou, pela quantidade de mesas e pelo tamanho da cozinha, que devia ter
muitos internos ali, mas seria ridículo um hospital num centro mágico
importante como a GD.
Saíram do prédio e Justin pode sentir o vento fresco que soprava e
balançava os feixes das plantações que cobriam o campo, atraindo nuvens de
pássaros que desciam sobre as plantas e disputavam as melhores espigas. Alguns
rapazes tentavam espantá-los com varas e estilingues, mas as aves teimavam em
retornar.
Ao redor da academia principal a movimentação era intensa. Aprendizes e Companheiros
se dividiam em grupos e se dirigiam para suas ocupações diárias, e Justin
reparou que os Mestres não participam dos trabalhos, mas se divertiam jogando
um jogo de tabuleiro, parecido com o xadrez e que era muito comum nos círculos
mágicos, porém, guardou a informação para questionar Matheus mais tarde.
Chegaram ao armazém e Taylor chamou
um rapaz que Justin reconheceu como o mesmo que ele havia roubado a aparência
no dia anterior. O rapaz se assustou ao revê-lo, mas Taylor o acalmou.
– Não se preocupe Michel. Ele está sob a guarda do Mestre Matheus. Não há
o que temer.
O rapaz pareceu ficar mais tranqüilo e entraram no armazém conversando.
Justin pensou se a oportunidade seria interessante para uma fuga, mas com
certeza Matheus o estaria vigiando e o afetaria novamente. Não. É melhor esperar até a noite, quando todos estiverem dormindo,
pensou enquanto examinava a situação ao redor. A maioria dos aprendizes
pareciam evitar seu olhar, o que deu a Justin certa sensação de poder, como se
todos o temessem, mas reparou que uma mocinha com traços indígenas o encarava,
como se não aprovasse sua estadia ali.
Taylor voltou logo depois, trazendo um bornal e um cajado e o entregou a
Justin que o recebeu surpreso.
– Hoje você vai trabalhar nos campos, espantando as aves e os roedores.
Amanhã cuidará dos animais e depois, ajudará no sanatório. Seguirá a mesma
rotina todos os dias, até que os Mestres decidam que sua dívida com a GD está
paga.
Justin ia abrir a boca para reclamar, mas sabia que precisava de um tempo
a sós para experimentar sua nova aquisição e o campo seria perfeito. Pensando
assim seguiu Taylor até o campo e, depois de receber instruções, foi deixado a
sós com seus instrumentos e com as aves que pairavam sobre a área de cultivo.
– Pronto! Agora fui promovido a um maldito espantalho – resmungou Justin
para si, e começou a enxotar os pássaros que iam e voltavam conforme ele se
retirava.
– Pro inferno com esse serviço. Vou resolver isso do meu jeito – e
abaixou-se e começou a desenhar, com o cajado, um circulo no chão. Uma luz
turva e amarronzada seguia o trajeto do cajado e formava o círculo, formando um
espetáculo curioso em meio a plantação. Terminou o círculo e apanhou um punhado
de espigas da plantação, depositando-as sobre o círculo. Fechou os olhos e
recitou lentamente:
XLIII
CANÇÃO DO LIVRO MARROM
A terra tremeu levemente e fumaça subiu do circulo quando Justin abriu os
olhos. A pupila estava dilatada e o branco totalmente coberto, formando uma
aparência curiosa. Colocou uma pena de um pássaro sobre o círculo e iniciou o
canto;
Caminho traçado, restrito alcance;
Limite florido, fuga, sem chance;
Círculo escuro, as vidas devoram;
Nascidos da terra, pra terra retornam.
Arco marrom, erguendo-se ao léu;
Mudança completa, expurgo no céu;
A fauna e a flora, no mesmo endereço;
Fim da labuta, eu reconheço.
A terra se abriu, liberando mais fumaça e engoliu as oferendas, liberando
raios de luz escura que se espalharam pelo campo e subiram aos céus, envolvendo
os pássaros que se debatiam e caiam mortos aos pés do ladino.
– Agora não vão mais incomodar – disse Justin sorrindo – Não sei como ninguém
pensou nisso antes – e sentou no chão, visivelmente estafado ao lado de algumas
aves que ainda se estrebuchavam – Cá posso me preocupar com coisas mais
importantes – e repuxou a calça exibindo o ferimento que teimava em não sarar.
– É uma pena, mas vou ter que abri-la novamente perna – e pegou o
canivete que estava no bornal e cortou os pontos, abrindo novamente a ferida
com uma expressão de dor. Um fiapo de sangue escorreu do corte quando Justin
enfiou o dedo e arreganhou o machucado, expondo um objeto brilhante que se
escondia sob a dobra da pele.
– Aí está você maldito – e retirou o brinco ensangüentado, limpando-o na
calça. O objeto lhe trouxe profundas recordações e Justin não pode impedir as
lagrimas de rolaram de seus olhos – Esse é o começo pai – disse em voz baixa, e
secou as lagrimas com a costa da mão.
O objeto não era necessariamente um brinco. Apesar de seu formato
semelhante, era uma pequena estrela de seis pontas com uma argola saindo da
ponta maior e emitia um tênue brilho dourado quando o sol reluzia em sua
direção. Possuía algumas inscrições em alguma língua desconhecida e apesar de
estar em perfeito estado, dava a impressão de ser muito antigo.
– Até que enfim vou usá-lo – disse Justin retirando o brinco que usava e
colocando o outro em seu lugar, esperando que um portal se abrisse, mas não
houve resultado algum. Tentou usá-lo de outras formas, mas todas as tentativas
foram em vão e o brinco apenas emitia um pequeno calor em contato com a pele.
– Maldito artefato. Qual será a maneira correta de usá-lo? – resmungou de
mau humor e retirou o brinco, guardando-o no bolso da calça. Seu ferimento
aberto começou a incomodá-lo e sabia que precisaria de cuidados se não quisesse
pegar uma infecção – Deve ser por isso que tem um hospital aqui – pensou em voz
alta – Para ajudar magos burros como eu que não conhecem nenhuma magia de cura
– e riu de sua desgraça.
Rasgou uma tira da camisa e amarrou na perna para estancar o sangramento
e, levantava-se para voltar para a sede, quando uma voz conhecida chamou sua
atenção.
– O que houve com os pássaros – perguntou Taylor se aproximando.
– Ah? Os pássaros? Eu os matei – disse o se recompondo – Agora não vão
mais incomodar.
– Você os matou?! Com ordem de quem? Sua tarefa era espantá-los, não
matá-los. Mestre Matheus não gosta que nenhuma vida seja desperdiçada
inutilmente.
– Não foi inutilmente – retrucou Justin – Eles estavam comendo a
plantação. Agora não vão comer mais. E não me venha com essa falsa compaixão.
Eles iam morrer mais cedo ou mais tarde mesmo, comendo esse milho de quinta
categoria.
– Saiba que Mestre Matheus ficará sabendo disso. E já que você terminou
seu serviço mais cedo, pode cuidar dos animais nos currais, e depois me ajudar
com os pacientes do Hospital. Ainda temos muito a fazer até o por do sol.
– Você pode fazer o que quiser, mas eu não farei nada enquanto não cuidar
dessa perna. Meu ferimento abriu e esta doendo pra diabo.
– Deixe me ver isso – disse Taylor desamarrando a faixa – Que porcaria
você fez aqui? Parece que abriu o ferimento de propósito.
Justin puxou a perna.
– Que espécie de idiota você pensa que sou para abrir o ferimento de
propósito. Eu caí enquanto corria atrás dos pássaros e aconteceu isso aí. Não
tive culpa.
– Hum! Por isso você quis se vingar matando os pássaros não é. Isso não
justifica. Eles não tiveram culpa de você ser descuidado – e lançou-lhe um
olhar de censura antes de pegar em seu braço e apoiá-lo – Vamos. Eu te ajudo a
chegar ao hospital.
Justin não teve remédio a não ser acompanhar o xamã que ia resmungando o
caminho todo que toda vida era importante e mesmo os pássaros causando
prejuízos não mereciam a morte. Justin agüentou a conversa até chegar ao seu
quarto e ter seu ferimento tratado, depois o despachou com a desculpa que
queria dormir e tirou o brinco para dar mais uma olhada.
– Mais cedo ou mais tarde vou descobrir como você funciona brinco devasso – disse para si mesmo – e
então o mundo será meu – e gargalhou por alguns instantes, deitando se na cama
e esticando a perna ferida que teimava em latejar.
No outro dia, já com a perna melhor, foi levado por Taylor para os
currais e teve que alimentar o gado e ordenhar as vacas e cabras e escovar os
cavalos. Chegou a pensar em usar um rito para se livrar novamente do serviço,
mas não conhecia nenhum que fizesse aquilo, então teve que trabalhar. Quando
terminou o serviço nos currais, foi levado para os chiqueiros, onde alimentou
os porcos e lavou as instalações. No final do dia estava tão exausto que nem
esperou o jantar. Caiu na cama e desmaiou.
Acordou no outro dia com uma voz feminina do outro lado da cela. Abriu os
olhos e Taylor estava abrindo a porta, acompanhado de uma moça, com traços
indígenas, a mesma que o encarara quando fora buscar as ferramentas no depósito
e não parecia feliz em estar ali, naquele momento.
– Por que tenho que trabalhar com ele. É um ladino e tentou roubar a GD –
disse a moça sem se preocupar que Justin pudesse ouvir.
– São ordens do Mestre e ele não é tão ruim assim. Cuidou muito bem dos
animais ontem – respondeu Taylor desviando o olhar.
– Pois eu fiquei sabendo que ele matou todos os pássaros do campo para
não ter que afugentá-los e só não matou os animais do curral por que você
estava vigiando.
– Isso não é verdade – emendou Taylor – Quer dizer, a parte dos pássaros
sim, mas mesmo assim... Bem esqueça. O Mestre Matheus ordenou e não devemos
questionar suas ordens. Você sabe disso.
– Bom dia pra vocês também – disse Justin entrando na conversa – Sempre fico
feliz em ser o assunto mais comentado do momento – e sentou-se na cama – Aonde
vão me escravizar hoje?
– Bom dia Justin – respondeu Taylor – Essa é minha irmã Nayara Wind. A
partir de amanhã você poderá se mudar para os dormitórios e ela será sua
companheira de quarto e o ajudará a se adaptar à vida na GD. Mestre Matheus
ficou impressionado com seu esforço ontem e decidiu lhe dar uma nova chance.
Vai conviver com os aprendizes e terá aulas com os Mestres, e se for aplicado
poderá se tornar um Companheiro como eu e até um Mestre como o Mestre Matheus.
Mas terá que continuar a realizar suas tarefas. Todos temos que colaborar para
o bom funcionamento e manutenção da GD.
Justin tentou não demonstrar surpresa, mas não esperava por aquilo. Fazia
poucos dias que estava preso e trabalhando e esperava ficar um bom tempo assim,
antes de conquistar a confiança dos Mestres. Sabia que homens e mulheres
compartilhavam os dormitórios na GD e ainda se lembrava do banho que tomara com
a garota indiana, dessa vez, porém, ficaria com a irmã do xamã e ela não
parecia muito satisfeita com isso. Levantou-se e tentou sorrir para ela, mas a
garota estava com a cara amarrada e não parecia disposta a concordar.
– Eu não vou dormir com um ladino. E se ele me atacar à noite? – disse a
moça olhando para o irmão.
– Ele não vai te atacar. Mestre Matheus me garantiu isso – A moça não
parecia se contentar e encarou Justin com raiva no olhar.
– Se você tentar algo comigo eu corto seu pinto – e fez sinal com as mãos
indicando o corte – Corto e jogo pros porcos. Eles vão adorar. Eles comem de
tudo sabia?
Justin recuou. Nayara não devia ter mais que treze anos, mas era moça
formada, com belas pernas e formas arredondadas. Sua pele morena combinava com
seus longos cabelos negros e os olhos, grandes e amendoados, conferiam-lhe um
ar inocente. Dessa vez, porém, a moça parecia falar serio e o ladino preferiu
agir como se a moça não fosse importante.
– Não tenho interesse nenhum em você. Pode ficar sossegada. Gosto de
mulheres civilizadas.
A garota quase pulou sobre ele ao ouvir isso. E só se conteve quando o
irmão a puxou para trás e segurou seus braços firmemente.
– Me solte! – disse para o irmão – Vou mostrar a ele quem não é
civilizada.
– Justin – disse Taylor – Não fique provocando a Nayara está bem. Ela não
tem muita paciência e vocês vão trabalhar juntos a partir de amanhã. Mestre
Matheus quer que vocês passem a cuidar dos pacientes e eles ficam sensíveis
quando percebem alterações de humor.
– Quem são esses pacientes? – perguntou Justin mudando de assunto – Vocês
não têm nenhum druida aqui que posso cuidar dos doentes?
– Não são doentes comuns – respondeu Taylor – São magos com problemas
mentais. Pessoas que passaram por algum trauma muito forte ou não conseguiram
aceitar suas responsabilidades e acabaram aqui e não há cura para os males da
alma. Nem mesmo Mestre Matheus pode reverter isso.
– Eu não quero trabalhar com ele – disse Nayara inconformada, chamando a
atenção para si – Prefiro cuidar dos porcos.
– Não vou ouvir mais nada sobre isso Nay.
Você concordou em obedecer quando aceitei trazê-la comigo.
A moça ainda resmungou um pouco, mas acabou aceitando. Sabia que não
podia contrariar a ordem de um Mestre e seu irmão estava determinado a
lembrá-la disso – Ok então. Depois não diga que não avisei – e virou as costas
e saiu sem olhar para trás.
– Acho que ela não gosta mesmo de mim – disse Justin olhando o movimento
do quadril da moça enquanto ela se afastava.
– A Nayara é desconfiada assim mesmo. Com o tempo ela vai aprender a
gostar de você. Não se preocupe.
O diálogo estava ficando muito pessoal e Justin não gostava de
compartilhar sentimentos, então mudou o rumo da conversa para sua tarefa do dia
seguinte.
– Esses loucos que você disse. Ainda não vi nenhum por aqui. Onde eles
estão?
– Estão nas celas – respondeu Taylor – Só saem para comer e tomar sol,
mas não ficam muito tempo livres, a magia de retenção pode falhar e seria muito
perigoso se um paciente usasse um ritual aqui.
– Como assim? Eles são loucos não são?!
– Os pacientes têm variados graus de insanidade, mas são magos e podem
usar magia, e seria perigoso para eles próprios e para os demais se invocassem
um círculo e fizessem um ritual de troca. Por isso o hospital é selado. Não se
pode usar magia aqui dentro. Um Grão Mestre do passado – Alek Rose – cobriu
esse local com um selo perpetuo que não permite que o ritual se concretize,
deixando os internos, e a nós também, indefesos.
– Hum! Entendi – respondeu Justin percebendo o porquê de o terem trancado
lá: considerando que a historia do xamã fosse verdade, mesmo que ele não
estivesse fraco não poderia usar um ritual para fugir e, se tentasse, de alguma
forma eles descobririam.
– Bom. Já falei demais. Hoje você vai limpar os banheiros daqui e da sede.
É sua última tarefa com prisioneiro. Amanhã você começa a trabalhar como
aprendiz. Vou te esperar lá fora enquanto você se troca, não demore!
– Grande diferença – pensou
Justin enquanto vestia o uniforme de trabalho: um conjunto laranja de manga
curta e cintura apertada. E agora vou ter
que limpar a merda da GD toda. Só pode ser brincadeira – e saiu atrás de
Taylor.
Lá fora o dia estava nublado e um vento frio soprava do leste, arrepiando
os pêlos dos braços do ladino e fazendo-o encolher. Taylor percebeu e pediu a
um aprendiz que passava por ali, para buscar um casaco para Justin e entregar a
ele no banheiro dos Mestres, na sede. O rapaz deu meia-volta e desapareceu em
direção aos dormitórios enquanto o xamã tentava puxar conversa com o ladino.
– Não sei qual o seu grau de conhecimento, mas aprende-se muito aqui.
Tenho certeza que você vai gostar.
– Estranho! – respondeu Justin cortando o assunto – Sempre aprendi que os
xamãs são briguentos e irresponsáveis, tipo sua irmã, mas você é diferente. Por
quê?
Taylor riu.
– Essa é a definição dos círculos Justin. Na GD tudo é diferente. Aqui
aprendemos que tudo o que fazemos tem conseqüências. Boas ou ruins. Se fizermos
coisas boas. Coisas boas aconteceram conosco. Por outro lado, se agirmos de
forma egoísta. Assim também será o resultado. Nosso grão-Mestre Jeú desenvolveu
essa filosofia em seu primeiro ano aqui e foi a primeira coisa que implantou
quando assumiu a GD. Não há lugar para intrigas e maquinações aqui. Nayara
ainda é nova, mas ela também vai aprender isso – e virou-se para Justin – e
você também.
– Eu não – pensou Justin, mas
manteve para si.
Chegaram aos banheiros e Taylor deixou o ladino e foi cuidar de suas
obrigações. Justin se irritou ao ver a situação dos toaletes. Estavam inundados
e com absorventes usados espalhado por todos os lados. As privadas pareciam não
estar funcionando há anos e dejetos e restos de papel higiênico flutuavam no
liquido escuro formando uma sopa espessa e malcheirosa.
– Que merda! – xingou em voz alta – A quanto tempo será que ninguém limpa
essa porcaria?
Passou o dia limpando banheiros e lavando toalhas. Felizmente os demais
não estavam no mesmo estado do primeiro e o serviço foi mais tranqüilo. No
final do dia tomou um banho e se recolheu a sua cela, cansado, mas na
expectativa de testar a veracidade da história sobre magia ali. Pensando assim,
abaixou as mãos, cruzando-as e formando um circulo estrelado. Fechou os olhos
rapidamente e recitou.
XXVI Canção do Livro Marrom
Abriu os olhos e ergueu as mãos. Um crack
indicou que algo se quebrara e luz turva começou a emanar da rachadura,
iluminando a cela escura. O ladino sorriu satisfeito e começou a executar o
canto.
Da pedra o sustento, da terra o...
Sentiu a garganta trancar e a língua enrolar na boca. Tentou gritar, mas
a voz não saiu. A língua começou a inchar e preencheu todo o espaço de sua
boca, fazendo com que sufocasse. O oxigênio começou a faltar em seu cérebro e
por instantes achou que ia morrer, mas a porta da cela se abriu e Nayara entrou
correndo e abriu sua boca, puxando sua língua e liberando a entrada de ar.
– SEU IDIOTA! – disse a moça exasperada – MEU IRMÃO NÃO DISSE QUE NÃO
PODIA USAR MAGIA AQUI?
Justin inspirou profundamente e teve um acesso de tosse, caindo sobre a
cama. A língua aos poucos começou a desinchar e permitiu que ele falasse.
– Sisse, mas eu queria tser certesza – respondeu com a língua
ainda meio inchada – Que drroga.
– Eu devia tê-lo deixado morrer pra você aprender.
– Obrigzado! Err... pozr não me deixarr morrerr. Até quandzo
eu vou ficar com a língua azim?
– Deve voltar ao normal em poucas horas. E que isso lhe sirva e lição.
Quanta inconseqüência – e virou-se para sair – E agora vá dormir que amanhã
cedo começa seu turno.
– Obrigzado Nobamente!
Demorou a dormir, pensando no que havia acontecido, mesmo assim acordou
cedo no outro dia e foi se vestiu para o trabalho, mas Nayara chegou e o mandou
trocar de roupa.
– Agora você não é mais um prisioneiro. Pode usar sua roupa normal.
Justin sorriu, não porque poderia usar sua roupa normal, mas sim por que Nayara
estava extremamente linda. Usava uma calça de couro marrom, bem justa, e um top
vermelho que destacava seus pequenos seios. Um colar de conchas adornava seu
busto e, nos pés, botas pretas de salto alto fechavam o conjunto. O cabelo,
negro e liso, estava preso num rabo de cavalo e pela primeira vez, desde que a
conhecera, estava maquiada.
– O que foi? – disse ela sorrindo e estranhando a cara de bobo de Justin.
– Err... Nada não, vou me trocar e já te alcanço.
A moça concordou com a cabeça e saiu enquanto Justin vestia rapidamente
sua roupa comum e saia apressadamente atrás dela.
Passaram pelo corredor central enquanto conversavam sobre o hospital.
Nayara contou que um Mestre do espírito havia, há muito tempo, conjurado um
ritual para impedir que os internos usassem magia ali dentro, e evitar
possíveis acidentes – Os pacientes – dizia ela – não discernem as coisas e agem
por impulso, logo, não têm consciência das conseqüências de seus atos e por
isso são muito perigosos. Um ritual executado por um mago desequilibrado pode ter
resultados catastróficos. Tem até uma piada – continuou ela – de um alquimista
que, louco, matou seu melhor amigo e usou seu cérebro num ritual em troca da
sanidade, porém, ao se curar e constatar o que havia feito ficou louco de novo.
É uma piada besta, mas no leva a pensar sobre os perigos do uso incorreto da
magia – Apesar de já ter ouvido a mesma historia por Taylor, Justin ouvia tudo
de boca aberta e começava a entender a realidade do lugar. Porém um fato chamou
sua atenção.
– Como você percebeu o que se passava comigo ontem? Por acaso estava me
vigiando? – perguntou interrompendo a moça.
– De certa forma sim – respondeu Nayara – na verdade todos os internos
são vigiados. Existem câmeras de segurança em todas as celas e fazemos plantão
para cuidar que ninguém faça alguma besteira.
O ladino se preparava para protestar quando encontraram Mestre Matheus.
Nayara fez uma referencia e Justin a acompanhou da melhor forma possível.
– Bom dia meninos – disse Matheus
saudando-os.
– Bom dia Mestre – respondeu Nayara – estava levando Justin para seu
primeiro dia de trabalho no hospital.
– Que ótimo Nay, mas
infelizmente Mestre Jeú me pediu pessoalmente que encaminhasse Justin para seu
gabinete. Ele o quer tomando conta de suas necessidades e acredita que um
ladino conseguira melhor auxiliá-lo na administração.
Nayara fez cara de decepção, mas logo se recompôs e sorriu para Matheus.
– Claro Mestre, não tem problema, vou procurar outra pessoa para me
ajudar. Até mais – e saiu apressadamente.
– Parece que vocês estavam se dando bem – disse Matheus assim que Nayara
desapareceu.
– É. Estávamos. Por que o velhote me quer ajudando-o? Deve ter muitos
aprendizes ou Companheiros mais capacitados que eu.
– Não sei, mas acredito que ele se vê refletido em você, por isso quer
ajudá-lo. Vamos não devemos deixá-lo esperando.
Justin seguiu Matheus a contragosto e logo chegaram à sala do Mestre. Era
a mesma sala onde ele estivera dias atrás roubando o brinco devasso, mas agora o Grão-mestre não estava sozinho: cinco
pessoas, todas elas Mestres, incluindo duas mulheres discutiam com Jeú sobre os
rumos que a GD tomaria dali em diante. Ao perceberem a chegada dos dois, todos
se levantaram e se despediriam, deixando apenas o velho, Matheus e Justin no
aposento.
O velho recebeu Matheus com um abraço e o convidou a sentar, enquanto ordenou
a Justin que limpasse os artefatos e tirasse o pó das estantes.
– Tive aquele sonho novamente Mestre – disse Matheus sentando-se na
cadeira – mas dessa vez parecia que o final seria diferente.
Jeú o encarou com seus olhos vazios e tomou um gole da bebida que estava
sobre a mesa, esperando que ele começasse a narrativa. Matheus entendeu a deixa
e respirou fundo, criando expectativa para a história que ia contar.
– Sonhei com uma grande batalha –
começou o sábio – que começava na terra,
passava pelo fogo e terminava no espaço e da qual todos os elementos faziam
parte. Almas, espíritos, fogo, água, terra, luz, etc. Todos se concentravam e
se uniam ao redor de uma grande bola de energia escura, que subia aos céus e
desaparecia, vindo novamente a surgir em um lugar distante, amplo e iluminado,
onde dois deuses, um velho e um jovem, se enfrentavam e despedaçavam o universo
aos seus pés, lutando entre corpos sem vida de anjos e homens. Vi ainda uma
sombra que se levantava do túmulo e se unia a uma serpente coroada, como se uma
fosse a vestimenta da outra e elas portavam a resposta para uma pergunta
incompreensível. Vi alma e espírito, caminhando lado a lado e cantando uma
canção de esperança. Vi a derrota fugindo e júbilo e alegria tomando conta da
multidão, em meio a um fogo que subia da terra e iluminava o céu, levando justiça
e liberdade para todas as pessoas do mundo, enquanto se enrolava,
definitivamente, o manto celeste e infinito do Criador.
– Infelizmente acordei antes do final e isso me deixou ainda mais confuso
sobre o sentido dessa revelação – concluiu, olhando Jeú nos olhos – Gostaria da
sua opinião Mestre.
O velho pigarreou.
– Eu já vivi muito tempo e cometi mais erros do que seria permitido a uma
pessoa cometer – começou Jeú, sacudindo as mãos e virando os olhos, como se
tentasse afastar as lembranças – então talvez não seja a pessoa mais indicada
para lhe dizer isso, embora o faça de qualquer maneira: não há, nesse tempo,
mais espaço para a relutância e a covardia. Os sinais são tão claros que até um
cego com eu posso vê-los. Meu conselho é que você faça o que tem que ser feito,
mesmo que isso custe a alegria ou mesmo a existência de todas as pessoas que lutamos
até hoje para proteger. Já adiei demais essa decisão e, mesmo que eu não
consiga apagar os erros do passado, talvez consiga corrigir as injustiças do
futuro. E você Matheus, fará parte disso. Onde falhei, você triunfará. Onde
hesitei, você decidirá – e tossiu, cobrindo a boca com as mãos – Confio a você
a nossa sorte, como antes confiaram a mim, e o conclamo senhor e guardião de nosso
destino. Nosso e o de toda a humanidade.
Matheus abaixou a cabeça e Jeú tocou seu ombro, como se o estivesse consagrando
e investindo com uma missão, enquanto Justin, que ouvia tudo com atenção,
virou-se para a parede e sorriu seu sorriso de lobo. Do lado de fora os sinos
tocavam e os alunos e Mestres celebravam e gritavam:
– MATHEUS É O NOVO GRÃO-MESTRE DA GD.
***
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