A BATALHA
O dia amanheceu quente. Wesley levantou e foi ao banheiro tomar um banho
e escovar os dentes, enquanto planejava o dia com Mariah. Ainda não tivera uma
oportunidade com a moça e o tempo estava a correr. Saiu do banheiro, vestiu um
calção e se dirigiu à cozinha para o desjejum. Mariah já estava lá, a comer e
tomar café.
– Bom dia Wesley! Levantou cedo hoje. – A moça se levantou e o saudou com
um beijinho no rosto.
– É, levantei. Quero aproveitar o dia já que passei os últimos dormindo.
– sentou-se e comeu um pedaço de pão com manteiga – O Thomas ainda não
levantou? Na estrada ele sempre levantava antes de mim.
– Acredito que sim. Ele sempre levanta cedo. Já deve estar nos estábulos
cuidando dos cavalos.
Wesley franziu o cenho. Apesar de nunca ter visto o primo maltratando
animais desnecessariamente, também nunca o vira cuidando de um. – Terá o campo amolecido o coração do
necromante, pensou.
– Ele faz a limpeza todas às manhãs. Meu pai determinou que pelo menos um
de vocês trabalhasse para pagar pela hospedagem e comida – disse a moça
limpando a boca com o punho – Thomas aceitou sem pestanejar e como você estava
desmaiado...
– Sério! Não sabia disso. – Nunca imaginou o primo orgulhoso limpando
estábulos e a cena despertou sua curiosidade – Está aí uma cena que eu gostaria
de ver.
– Podemos passar lá agora se você quiser. – respondeu a moça se
levantando da mesa.
– Não, não! Se eu aparecer por lá é bem capaz de ganhar serviço. Vamos
fazer algo mais divertido.
– Então podemos passear no bosque. O dia está quente e debaixo das
árvores sempre corre um vento fresco. Podemos levar docinhos e refrigerante e
fazer outro piquenique.
Wesley concordou com a cabeça e Mariah passou a fazer os preparativos
para o passeio. Organizou a cesta com os lanches e deu a garrafa de suco para
Wesley segurar, enquanto avisava os criados que sairia para o bosque com o
amigo. O ranger buscou sua mochila de viagem e saíram para o campo, mas
preferiram ir andando para não correr o risco de Thomas os interceptar e
frustrar seus planos.
O caminho era arborizado e sereno. Um vento fresco soprava do leste e
levantava as folhas caídas que forravam o terreno formando pequenos redemoinhos
que Wesley tentava dissipar com os braços, enquanto Mariah ria e aplaudia as
travessuras do rapaz.
Caminharam por cerca de meia hora e chegaram. O bosque era o mesmo que
tinham estado anteriormente, ainda na companhia de Thomas, e parecia intocado
pelo tempo. Grandes carvalhos subiam aos céus e causavam uma sensação de
inferioridade nos presentes, que se sentiam minúsculos, frente às árvores
imponentes.
Mariah forrou o chão e sentaram. Wesley retirou a mochila das costas e
sacou o bandolim enquanto a moça servia uma fatia de torta e encarava o amigo
com ternura.
– Vai tocar pra mim? – perguntou enquanto o ranger afinava as cordas.
– Se você quiser. – e sorriu para ela – Estou meio fora de forma. Há dias
não pego no bandolim.
– Mas você está me devendo uma canção. – disse forjando um ressentimento
– Não pense que me esqueci.
– Pois pagarei agora. Sobre o que quer que eu cante?
A jovem pensou um pouco olhando ao redor. Um leve zumbido soava no vento
e quebrava o silêncio e, ao longe, um exame de abelhas seguia em direção aos
jardins. Nuvens esparsas enfeitavam o horizonte e conferiam uma atmosfera calma
ao lugar, enquanto ao seu lado, um jovem rapaz de cabelos loiros a encarava
como que perdido em seu olhar.
– Sobre meus olhos. – Respondeu a moça – E sobre o céu, e cavalos, e
abelhas colhendo mel e tudo mais que é belo e bom.
– Certo. Verei o que posso fazer. – E ajeitou-se na relva acomodando o
bandolim no colo e dedilhando algumas notas.
Os primeiro acordes indicavam uma canção animada e a moça começou a se
agitar ao seu lado.
Campeiros cavalgam, montando um corcel;
Vendo seus olhos no céu.
Abelhas sugaram, das flores, o mel;
Vendo seus olhos no céu.
Ooooh. Vendo seus olhos no céu.
Ooooh. Vendo seus olhos no céu.
Guerreiros lutavam com espada e broquel;
Vendo seus olhos no céu.
Cantores cantavam cantigas ao léu;
Vendo seus olhos no céu.
Ooooh. Vendo seus olhos no céu.
Ooooh. Vendo seus olhos no céu.
A moça aplaudiu e ovacionou o rapaz que sorriu constrangido. Ia se
levantar para dar um abraço e um beijo de agradecimento quando uma raposa
vermelha surgiu de uma moita carregando um filhote de lebre nos dentes. O
animal ainda estava vivo e remexia vigorosamente tentando se libertar do
predador. Mariah avançou rapidamente em direção ao animal e este fugiu deixando
a presa para trás. A moça pegou a lebre e a colocou no colo. Seu vestido branco
manchou-se de vermelho com o sangue que vertia continuadamente do animal e
Wesley fez menção de retirá-lo do colo da garota, mas ela não quis. Abraçou o
bichinho e virou-se para o rapaz como olhos suplicantes.
– Ela vai morrer se não fizermos alguma coisa. – Wesley tentou falar, mas
não sabia o que dizer. O mais certo era levá-lo a um veterinário, mas no fundo
sabia que o animal não sobreviveria ao percurso.
– Vamos levá-lo para a sede e tentar um curativo, mas não tenho grandes
esperanças, o ferimento é muito grave – concluiu o ranger examinando a lebre.
Mariah levantou-se decidida e Wesley imaginou que ela acataria sua idéia,
porém a jovem deitou o animal no chão folhado e desenhou um pentagrama com um
círculo em volta. Uma luz pálida seguia seus movimentos e iluminava o local
produzido um efeito fantástico entre as folhas. Wesley assistia a tudo
boquiaberto enquanto a moça fechava os olhos e recitava lentamente.
X CANÇÃO
DO LIVRO BRANCO
Mariah abriu os olhos e Wesley reparou que as pupilas haviam
desaparecido. Seus olhos estavam totalmente brancos e emitiam uma luz prateada.
A moça fixou o olhar na lebre e iniciou o canto.
Luz e terra, Folhas e vento;
Círculo Branco, feliz tratamento;
Problema tratado, por mãos de mulher;
Ferida sarada, a maga requer!
Os círculos brilharam mais intensamente e produziram uma nuvem branca
sobre o animal. Subitamente a luz subiu aos céus e desceu violentamente,
atingindo em cheio, a lebre que se esparramou com a descarga e guinchou em
protesto, no mesmo tempo em que a luz se espalhava sobre seu corpo e a ferida
desaparecia instantaneamente.
Wesley estava estarrecido, nunca imaginara que Mariah poderia ser uma druidiza8.
Levantou-se para abraçá-la enquanto a jovem colocava o animal sadio no colo e
chorava de emoção.
– Eu a salvei Wess. – O rapaz sorriu emocionado pela forma carinhosa como
a moça o tratou e concordou com a cabeça, enquanto Mariah continuava falando
extasiada – Como minha mãe havia me ensinado. Eu consegui – E sorriu em meio às
lágrimas abraçada com o ranger.
O vento começou a soprar novamente e levantou as folha que forravam o
solo. Araras vermelhas saíram em revoada gritando e grasnando enquanto do alto
das árvores bandos de sagüis guinchavam e pulavam de galho em galho como que
comemorando o ato recente, mas nada disso foi ouvido pelos dois que pareciam
envolvidos por uma mágica especial. Os corpos se aproximaram e Wesley pode
sentir o doce sabor dos lábios de Mariah. Parecia que nada no mundo poderia
interromper aquele momento, porém um som irônico vindo de trás da árvore mais
próxima os trouxe de volta a realidade.
– Clap, clap, clap – A madrasta
com seu belo vestido preto saía de trás da árvore batendo palmas e sorrindo
para os dois. Wesley assustou-se e supôs que a mulher fosse repreendê-los pelo
comportamento ousado, mas ela se limitou a encará-los com uma olhar sarcástico.
– Meus parabéns Mariah!– disse finalmente – Até que enfim desencalhou.
Apesar do seu pretendido não ser grande coisa, combina bem com você. Feio,
burro e um mago de quinta categoria. Diga-me afilhada, ele também só sabe
executar magias de cura?
– Wesley é um mago muito melhor que a senhora um dia poderá sonhar a ser.
Ele tem um coração gentil e ama a natureza – disse Mariah se levantando e
enfrentando a bruxa que a encarava com um olhar de desprezo.
– É! Deve ser um ótimo mago mesmo. Se escondendo atrás de uma bruxa fraca
que possui apenas ridículos poderes de cura. Foi uma bela herança que sua mãe lhe
deixou não afilhada? – e mudou o semblante – O privilégio da água não á salvou de mim e muito menos salvará a ti.
Pretendia esperar você se formar e desaparecer daqui para colocar meus planos
em curso, mas já que contratou esses projetos de magos para me impedir acho que
vou ter que acelerar as coisas. Depois que acabar com você e dar um fim no seu
inútil pai, será fácil requerer a propriedade e tomar posse das terras como
herdeira legítima.
Wesley que até aquele momento permanecera sentado levantou-se e encarou a
maga negra frente a frente. Seus olhos estavam totalmente esverdeados e um
vento fresco recomeçou a soprar brincando com seu cabelo e balançando os galhos
das árvores.
– Pode me criticar sempre que quiser senhora. Eu não ligo. Mas não posso
permitir que ofenda Mariah na minha frente. Não gosto de lutar com mulheres,
mas o farei se não se retratar.
O vento ficava mais forte à medida que Wesley falava, o vestido da
necromante levantou-se, revelando a lingerie preta e as belas pernas torneadas.
– É só isso que você sabe fazer? – zombou a bruxa – Levantar saias de
mulheres? O que pretende fazer? Vencer-me pela vergonha. – e riu mais alto – Ou
pretendia mostrar à minha tola afilhada o seu grande poder? – completou frisando o final.
– CHEGA! – Wesley abaixou e desenhou pentagramas no chão em volta de si
enquanto a necromante parecia se divertir com a situação. O ranger levantou,
fechou os olhos e recitou.
XXXVI
CANÇÃO DO LIVRO VERDE
Abriu os olhos e tocou no tronco das árvores ao redor, os círculos brilharam
e subiram pelo caule atingido as folhas e se espalhando no ar no mesmo instante
em que o ranger iniciava o canto.
Progênies da terra, barreira solar;
Umidade dispersa, vapores no ar;
Terreno fecundo, promessa cumprida;
Levante regido, liberdade retida
Carvalho frondoso, plantado no chão;
Se ergue da terra, uma verde prisão;
Oferta servida, Exórdio do rito;
Domínio da flora, eu solicito!
O ar se tornou mais quente e seco. A grande árvore que os sombreava
balançou de um lado para outro como se quisesse se libertar do chão. De repente
seus galhos moveram-se e formaram punhos que se abriram e agarram a necromante
erguendo-a até o topo. A mulher, embora surpresa, não revelou sinais de medo ou
apreensão. Apenas curvou-se para frente ao ser espremida entre os galhos que a
suspendiam no ar.
– RETRATE-SE! – gritou Wesley se posicionando embaixo da estranha prisão
verde que armara para a Madrasta - RETRATE-SE E A DEIXAREI IR. CASO CONTRÁRIO
ORDENAREI QUE ESSES GALHOS ESPALHEM SUAS TRIPAS POR TODA A EXTENSÃO DO BOSQUE.
Apesar da situação aparentemente desfavorável a mulher riu e levantou o
rosto para encará-los.
– Meus parabéns garoto. Acho que o subestimei. Não imaginava que um
pé-rapado como você fosse capaz de executar um canto dessa complexidade e ainda
permanecer em pé. Eu bateria palmas novamente, mas meus braços estão um pouco
ocupados no momento.
Ao dizer isso a mulher moveu o corpo para trás aparentemente tentando se
soltar. Wesley percebeu e apertou ainda mais o abraço da árvore. A necromante
abaixou a cabeça e ao levantar, seus olhos estavam totalmente negros, como se a
pupila houvesse engolido o restante. Ela sorriu maleficamente e recitou
lentamente.
XVIII
CANÇÃO DO LIVRO NEGRO
O tempo escureceu. Wesley e Mariah sentiram como se o ar ao redor estivesse
sendo sugado. Uma névoa negra saiu das mãos da mulher e se espalhou pelos
galhos em forma de punho. O ranger apertou ainda mais o punho e saliva e espuma
escorreram da boca da madrasta, envolvendo e molhando as folhas e galhos ao
redor. Um cheiro sufocante de veneno inundou o lugar e a necromante iniciou o
canto.
Pedido cumprido, oferta pendente;
Saliva rogada, resposta prudente;
Encanto nocivo, contágio seguro;
Curtido veneno. Eu asseguro!
Feixes de luz negra saíram das mãos da bruxa e percorrem o caule e as
raízes da planta. O local onde a saliva havia caído começou a ferver e liberar
uma fumaça negra que infestou o ambiente. As folhas murcharam e a árvore parou
de se mexer liberando a necromante que deslizou pelos galhos em direção ao solo
com um sorriso nos lábios.
Wesley não se deu por vencido, moveu os braços para a próxima árvore e
imediatamente ela se moveu em direção a necromante tentando agarrá-la. A
madrasta apenas cuspiu sobre seus galhos e o carvalho murchou e secou, parando
de se mover.
– Não adianta moleque! – zombou a bruxa – Seus truques não passam de
brincadeira de criança perto de mim. Dê-me um segundo e lhe mostrarei magia de
verdade. – dizendo isso a necromante sacou uma velha mochila de trás da árvore
da qual saíra e despejou seu conteúdo com estardalhaço no chão.
– Reconhece Mariah? Isso é o que sobrou da sua mãe. – A garota levou as
mãos ao rosto e chorou ao contemplar aquela cena grotesca. Um amontoado de
ossos e cabelo se formou aos pés da necromante que sorriu e atirou um osso no
casal que contemplava horrorizado. – Diga olá para a mamãe – E riu
diabolicamente.
Wesley se moveu na expectativa de apanhar a bruxa de surpresa enquanto
ela zombava de Mariah, mas a mulher se virou e encarou-o fingindo ternura.
– Não se preocupe queridinho. Não me esqueci de você. E antes que eu me
esqueça, não trouxe esses ossos aqui apenas para unir a família. Vou lhe
mostrar o verdadeiro poder dos nascidos sob o privilégio das trevas.
Dizendo isso a madrasta abaixou-se e começou a desenhar um pentagrama com
as mãos. O tempo voltou a escurecer a medida que ela desenhava e os olhos, que
tinham voltado ao normal, agora estavam negros novamente. A mulher levantou e
exclamou lentamente:
LXVI
CANÇÃO DO LIVRO NEGRO
O tempo fechou. Uma fumaça negra emanou da mulher e infestou o ambiente
tornando-o sombrio e gélido. Os ossos tremeram sob seus pés e a necromante
iniciou o rito.
Clamores das trevas, refúgio sombrio;
Almas seladas, hospedeiros do frio;
Oferta arriscada, de restos mortais;
Implante soturno, vontade jamais.
Feliz apatia, domínio firmado;
Permuta concreta, serviço comprado.
Círculo negro, respaldo impuro;
Controle das mentes. Eu asseguro!
A terra tremeu. A escuridão inflou-se como um balão e em seguida
retornou, envolvendo os ossos e consumindo-os. Mariah gritou de aflição e caiu
de joelhos, enquanto Wesley assistia embasbacado o círculo negro devorar o que
sobrou da mãe de sua amada e desaparecer no ar.
– Pronto. – debochou a bruxa – Agora é só esperar a cavalaria chegar.
Wesley que não conhecia aquele rito estranhou que nada estivesse
acontecendo imediatamente e por um minuto suspeitou que a magia houvesse
falhado, mas então ouviram ao longe gritos exasperados de revolta e selvageria
e o som inconfundível de uma multidão em movimento. O pai de Mariah foi o
primeiro a chegar. Carregava um facão de cortar cana em uma das mãos e um
punhal de prata na outra e avançou para o casal com sangue nos olhos. Aos
poucos outros colonos foram chegando. Todos carregando enxadas, foices e
ferramentas dos mais variados tipos e formaram um círculo em volta do casal que
se abraçavam e assistiam assustados aquela reunião nada acolhedora. Então
Wesley se livrou de Mariah e deu um passo a frente. O vento recomeçou a soprar
e movimentar as árvores ao redor que abaixaram e juntaram boa parte dos colonos
num abraço apertado. Gritos de fúria foram ouvidos enquanto tentavam, em vão,
se libertar dos galhos que os prendiam e os sustentavam no ar.
– Não adianta fedelho. Posso me livrar de quantas árvores forem
necessárias. Livro-me da floresta toda se for preciso. – e tocou na árvore mais
próxima fazendo a secar e curvar, libertando o pai de Mariah e alguns colonos –
Um truque bobo desse nunca vai me impedir.
– Então convocarei os elementos; chuvas, raios e granizo se for preciso.
Ou bestas do campo; cães e serpentes. Não sirvo apenas para controlar árvores.
– E como pretendo me atingir com isso. Não duvido que consiga invocar um
raio, mas não tem poder para direcioná-lo e poderia atingir qualquer um, desde
um desses colonos imprestáveis até minha inútil afilhada. E se invocar algum
animal contra mim, vou simplesmente mandar que meus homens dêem cabo dele. Você
vai ter que escolher, ou salva os colonos dos animais, ou os animais dos
colonos. – E riu descaradamente.
Wesley sabia que ela tinha razão, mas não queria demonstrar na frente de
Mariah. Por outro lado a situação se tornava desesperadora. O grupo armado se
reunia novamente em volta dos dois e seus melhores trunfos haviam sido
descartados. Mariah abraçou o amigo e esperou pelo pior enquanto a bruxa movia
a tropa para atacá-los e se preparava para mais um ritual, movendo os braços e
desenhando círculos negros no ar.
– Digam adeus crianças, foi um prazer tê-los em minha companhia todo esse
tempo, mas... – A necromante não terminou a frase, pois um vento gélido começou
a soprar fortemente arrepiando os cabelos e agitando os presentes. Uma força
descomunal se movia ligeiramente em direção à floresta vinda dos estábulos e
todos se entreolharam como que surpresos pelo acontecimento. Wesley que
conhecia aquela energia maléfica sorriu e apontou com o dedo para o vulto negro
que se aproximava rapidamente.
– Agora vai ficar interessante.
O vulto tomou forma a poucos metros de onde todos se encontravam. A
necromante pareceu surpresa ao reconhecer Thomas envolto em toda aquela energia
tétrica.
– Ora, ora! – exclamou a madrasta – Mais um convidado para nossa festa.
Thomas riu – Então finalmente se revelou bruxa. Imaginei que fosse
esperar até a noite e tentar algo em surdina, mas nunca pensei que seria tola o
suficiente para tentar um ataque direto em plena luz do dia.
– Dia ou noite. Que diferença faz? Não preciso ocultar minhas ações
quando posso controlar todos que poderiam se opor a mim. – E fez um gesto com
as mãos movendo o grupo de colonos em direção a Thomas. O necromante pareceu
não se importar, tirou a camiseta preta e empoeirada que usava e jogou sobre um
amontoado de folhas e galhos que forravam o chão do bosque.
– Podem vir. Há tempos não participo de um bom corpo a corpo e já estava
ficando enferrujado – e desviou do primeiro colono que tentou acertá-lo com uma
foice, socando-o no rim direito, o velho contorceu-se e sentou no chão largando
a foice a tempo de Thomas erguê-lo com um chute no queixo – Não preciso de
magia para dar cabo desses velhos moribundos.
Por um momento a madrasta pareceu preocupada com o rumo que a situação
estava tomando. Os colonos cercaram Thomas, que parecia estar se divertindo com
a situação, mas não houve tempo para mais combates. Wesley, livre de atenção,
moveu-se para o meio da disputa e comandou as árvores ao redor que, mais uma
vez, prendeu a todos, com exceção da bruxa, nos galhos mais altos de suas
copas.
– Não precisa me ajudar. – disse Thomas irritado.
– Não estou ajudando. Estou salvando esses homens de ti. – respondeu
Wesley – Eles são inocentes. Não devemos feri-los.
– Bah! Você e sua piedade simplória. Que seja então. Vamos acabar logo
com isso.
Em seguida moveu os braços e formou um círculo que desceu à terra e se
expandiu por toda a região ao redor. Fumaça negra subiu da terra e infestou o
ambiente ao mesmo tempo em que o rapaz sacou uma faca de cozinha do bolso
traseiro e fez um corte no pulso, derramando sangue no local onde o círculo
descera. Um pequeno terremoto sacudiu o local e necromante recitou com voz
grave.
LXXXIX
CANÇÃO DO LIVRO NEGRO
Os círculos engoliam o sangue que vertia e liberavam fumaça e cheiro de
carne apodrecida. As pupilas de Thomas dilataram e encobriram toda a extensão
dos olhos quando ele iniciou o canto.
Sussurros da noite, gélida sorte;
Névoa sombria, serventes da morte.
Artéria rompida, serviço comprado;
Alma rasgada e destino selado.
Círculo negro e terreno ungido;
Força das trevas, cadáver erguido.
Oferta de sangue, de grado, servida;
Regime imposto, pendência suprida.
Sede maldita e fome voraz;
Controle astuto, vontade sagaz.
Sono suspenso, sepulcro escuro;
Morte sangrenta. Eu asseguro!
O medo tomou conta dos presentes. Wesley que apenas tinha ouvido falar
naquele canto se encolheu arrepiado enquanto Mariah o abraçava receosa do que
poderia acontecer. Um relance de terror passou pelos olhos da Madrasta que
encarou Thomas com um olhar suplicante enquanto vultos negros e gélidos subiam ao
céu e desciam à terra enquanto rodeavam o necromante bebendo do sangue que
escorria no chão. A cena grotesca durou alguns segundos e então a luz
desapareceu como se o Sol tivesse sido engolido pelas sombras. Gritos de terror
foram ouvidos enquanto o necromante se escorava no tronco mais próximo
relativamente estafado.
Passos vagarosos foram ouvidos em meio a escuridão extrema. Sussurros e
grunhidos acompanhavam a tétrica marcha e gelava o coração dos presentes.
Mariah gritou abraçada a Wesley e Dalila soluçou percebendo o destino que a
aguardava.
– Espere por favor! –
suplicou a madrasta em meio à escuridão – Vamos entrar em um acordo.
– Hah! Tarde demais – respondeu Thomas – Agora que foram invocados, os
mortos precisam comer. Você sabe. Não é nada pessoal – E sorriu uma risada
macabra.
Aos poucos o tempo foi clareando e todos puderam ver o que se aproximava.
A uns cem metros de distância um grupo de mortos-vivos se arrastava lentamente
em direção ao grupo, enquanto suas vísceras e pedaços de carne apodrecida
ficavam pelo caminho. Wesley pareceu tontear com a visão e se escorou, com
Mariah, na árvore mais próxima. A mudança de atenção libertou os colonos que estavam
pendurados nos galhos acima dos presentes e todos caíram estatelados ao redor
de Dalila. A mulher aproveitou a ocasião e posicionou-os ao seu redor para
protegê-la. Thomas fungou.
– Não vai adiantar. Eles não pararão até terem alcançado seu objetivo.
Mesmo que os faça em pedaços eles se levantarão novamente até que sua ordem
seja cumprida.
– Então os detenha. – a madrasta implorou – Pare-os e eu farei o que você
quiser.
– Sabe que não posso fazer isso. Eles precisam cumprir a ordem ou se
levantaram contra mim. Você conhece as regras suponho.
– Então mude o comando. Pode fazer isso. Ordene que comam um dos colonos,
tenho certeza que ninguém vai se importar.
Mariah abriu a boca para protestar, mas Wesley balançou a cabeça
indicando que era melhor a moça não se intrometer. – Deixe por conta de Thomas
– sussurrou ele.
Enquanto conversavam os zumbis aproximavam-se perigosamente do círculo de
batalha. Alguns eram apenas ossos e frangalhos enquanto outros ainda
conservavam uma aparência humanóide. Mariah tampou os olhos e soluçou ao ver
uma criança nua acompanhando o cortejo.
– E porque eu faria isso? – perguntou Thomas respondendo à madrasta.
– Para dar fim a essa situação. – respondeu a mulher – Prometo libertar
todos e ir embora para sempre. Vocês nunca mais ouvirão falar de mim. – E olhou
para Mariah – Sua mãe não ia querer que você participasse disso, ela era uma
pessoa boa.
– Vamos acabar com isso – Mariah
suplicou para Thomas – Nada pode trazer minha mãe de volta e se ela prometer
nos deixar em paz, não precisamos machucá-la. – e suspirou pesarosa – Você não
pode direcioná-los para outro lugar? É terrível sacrificar um animal inocente,
mas é melhor que matar uma pessoa.
– Eu juro que não me verão mais. – chorou a madrasta – Por favor!
Os zumbis chegaram ao cerco e confrontaram os colonos que protegiam a
necromante. O pai de Mariah partiu o mais próximo ao meio com um golpe de facão
e a criatura agarrou e mordeu sua perna ao cair, arrancando um pedaço de carne
sangrenta. Outros colonos tentavam afastá-los com paus e foices, mas os zumbis
prosseguiam mesmo aos pedaços.
– POR FAVOR – gritou Mariah – Eles
vão matar meu pai.
– Ok! – respondeu Thomas para a madrasta – Liberte-os e eu tirarei as
criaturas daqui.
A mulher fez um gesto com a mão e todos sob seu controle caíram. Os
zumbis avançaram por cima dos corpos e cercaram a madrasta que implorava para
que Thomas cumprisse sua parte do acordo. O necromante riu sarcasticamente e
virou as costas ao ordenar as criaturas. – Bon Appétit.
– NÃO! – A mulher gritou e foi tomada pelos corpos podres que rasgaram
suas roupas e começaram a devorar seu corpo nu – VOCÊ PROMETEUUU – uma poça de
sangue ia se formando no local em meio a pedaços de carne e restos de vísceras
que os zumbis deixavam cair por dentre seus corpos. – DEUS ME AJUDE – Os gritos
cessaram quando as criaturas rasgaram sua garganta e abriram seu peito. A cena
grotesca durou poucos instantes e as criaturas se voltaram para o lugar de onde
vieram deixando um amontoado de ossos ensanguentados e um rastro de sangue
pisado no caminho.
– Ainda que eu ande pelo vale da
sombra da morte, não temerei mal algum... – zombou Thomas enquanto pegava o
saco que a necromante havia trazido com os ossos da mãe de Mariah e calmamente
recolhia os ossos da bruxa, limpando-os com as folhas secas que forravam o
solo.
– Podem ser úteis – disse em resposta ao olhar repugnante que Mariah lhe
lançava – E não precisa me olhar com essa expressão. A bruxa não tinha intenção
de libertar seu pai. Era apenas uma questão de tempo até ela voltar e assumir
novamente o controle da situação.
– Como você sabe? – perguntou a jovem assustada.
– Porque conheço aquele encanto. Sou um necromante lembra-se. Ele só é
desfeito com a morte do mago ou com algum tipo de magia divina. Mesmo que ela
aparentemente os tivesse libertado, bastaria olhar em seus olhos novamente para
assumir o comando. E depois que fossemos embora, ela voltaria e você estaria em
maus lençóis.
– Ela se arrependeu no final. Clamou por Deus. – disse Mariah angustiada.
– Deus não iria ajudá-la. Ele não se importa com o que acontece a reles
mortais imprudentes. Devia estar mais preocupado com seu pai e os colonos.
– Eu estou preocupada. – respondeu a jovem olhando ao redor – Eles estão
fora de perigo agora, não estão?
– Por enquanto sim. Apenas um novo encanto poderia submetê-los. – e
virou-se para Wesley – Temos que voltar à sede e dar um jeito de levar todo
esse pessoal para o hospital mais próximo. Principalmente o Sr. Abraão. Ele
perdeu muito sangue.
Mariah se moveu para o lado do pai e colocou sua cabeça no colo,
acariciando sua testa suada. Wesley seguiu o conselho do primo e buscou um
caminhão com o qual levou todos os colonos e o pai de Mariah para o hospital de
Miranda. Thomas deixou Mariah em seu quarto e se dirigiu para o pequeno
cemitério da propriedade onde constatou que todos os mortos, ou o que sobrou
deles, estavam novamente em seus túmulos e, com uma pá, enterrou a todos
novamente. Um vento gélido começou a soprar e balançou as árvores ao redor
atraindo a atenção de Thomas que olhou ao redor desconfiado enquanto uma figura
negra e fantasmagórica espreitava a atividade do necromante por trás de uma
estátua angelical e esboçou um sorriso ao constatar a identidade do seu
vigiado. A criatura esperou Thomas se retirar e voltou ao local do combate onde
tentou, sem sucesso, lamber as marcas de sangue que ficaram na terra.
No dia seguinte todos estavam no hospital para ter notícias da saúde dos
envolvidos na disputa. Enquanto esperavam, Wesley contou que dissera aos
médicos que o grupo havia sido atacado por algum animal selvagem enquanto
participavam de uma caçada e infelizmente a Sra. Dalila Darkness fora devorada
pelo animal e nada pode ser feito para salvá-la. O Sr Abraão já estava
consciente e recebeu a todos carinhosamente. Felizmente não se lembrava do
acontecido e engoliu a história do ataque selvagem.
– Muito triste o que aconteceu com sua madrasta. – disse para a filha – O
mais estranho é que nem eu, nem os colonos nos lembramos de nada. É como se
nossas memórias tivessem sido apagadas.
– Isso é muito comum. – disse Thomas com ar de quem entendia do assunto –
Sofreram um grande trauma. É normal que o cérebro tenha bloqueado essa memória.
O Sr. Abraão não discutiu, parecia feliz por ter receber alta do hospital
e voltou sorridente para casa. Os demais fizeram uma grande recepção quando ele
chegou e as coisas aos poucos voltaram ao normal. Mariah pagou com gosto o
combinado com os rapazes embora Wesley se negasse a receber sua parte.
– Não quero! – disse o ranger constrangido – Não te ajudei por dinheiro.
Fiz aquilo porque gosto de você.
– Eu sei Wess. – respondeu a garota – Mas trato é trato. Aceite o
dinheiro.
Thomas tomou a frente e sacou a bolsa com o dinheiro das mãos de Mariah.
– Se ele não quer, eu quero. Perdemos muito tempo aqui e não vou prosseguir com
as mãos abanando.
Wesley fez menção de reclamar, mas sabia que o primo tinha razão, então
convidou Mariah para um passeio nas redondezas enquanto Thomas contava o
dinheiro.
– Sabe Mary. Quando aceitei seguir nessa jornada com Thomas, não imaginei
que teria motivos para deixá-lo, mesmo conhecendo sua personalidade forte, mas
agora não tenho vontade de prosseguir. Quero ficar aqui. Com você. – e abraçou
fortemente a moça.
– Também quero ficar contigo Wess, mas sei que Thomas também precisa de
você, mesmo ele não demonstrando isso. Será que ele não permitiria que eu
seguisse com vocês nessa jornada?
– Viria comigo? – perguntou Wesley se afastando – Deixaria seu pai me
acompanharia nessa empreitada maluca?
– Meu pai não corre mais perigo, segundo o que Thomas disse, e vocês vão
precisar de uma maga branca para ajudá-los a enfrentar esse tal Adam Ocher se ele for mesmo tudo aquilo
que vocês disseram. – e sorriu mostrando os dentes perfeitos – Mas se não me
quiser ao seu lado, claro que vou entender.
– É claro que quero – disse Wesley pulando de alegria – É o que mais
quero no mundo. – e abraçou Mariah novamente – Vamos contar ao Thomas, ele
provavelmente não vai gostar, mas no fim vai aceitar. Tenho certeza.
Como previram Thomas não ficou nem um pouco satisfeito com a entrada da
jovem no grupo, mas depois que Wesley ameaçou ficar na fazenda com ela, ele
aceitou a contragosto. O pai de Mariah foi mais difícil de convencer. Agora que
estava viúvo novamente, não queria perder a filha também.
– Entendo que você queira passar o resto das férias com seu namorado, mas
sua madrasta acabou de falecer. Devia esperar uns dias até passar o luto para
depois pensar nisso.
– Mas os meninos têm que voltar
pai. Eles têm negócios na capital e não podem demorar mais. E essa casa me
deprime. Tantas lembranças da mamãe e da madrasta que quase não posso suportar.
– Compreendo filha. Se é assim tem minha permissão. Acompanhá-los-ia se
pudesse, pois também estou precisando de umas férias, mas não posso abandonar a
fazenda agora, porém deixe-me pelo menos levá-los até o aeroporto.
– Claro pai. E assim que as coisas se equilibrarem, deixe tudo e vá fazer
aquela viajem à Grécia que tanto queria. O senhor merece.
O pai concordou e todos foram arrumar as coisas. Na saída Wesley colheu
umas flores e pediu Mariah em namoro. A jovem aceitou com um beijo e os dois
seguiram de mãos dadas até o carro que os esperava para levá-los ao aeroporto
da cidade. O trajeto era longo, mas a alegria e descontração que seguiu aos
acontecimentos, aliado a perspectiva do que vinha adiante, fez com que as horas
passassem rapidamente e até o necromante se deixou contagiar pela emoção.
Wesley e Mariah cantavam uma canção qualquer e riam toda vem que a moça errava
uma parte. Thomas tentou acompanhar a cantoria, mas sua voz grave destoava dos
demais e acabou por desistir. Wesley tentou animá-lo a continuar cantando, mas
o necromante não quis. Esboçou um sorriso amarelo e virou-se para a janela
pensativo.
– Estamos a caminho alquimista...
***
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