O ENCONTRO
Uma moça sorriu e acenou para Adam no primeiro dia de aula na faculdade
depois do luto pela morte da avó. A notícia se espalhara rapidamente e, depois
do enterro, sempre aparecia alguém para lhe apresentar as condolências e
desejar força. Sua mãe lhe pedira para ficar mais uns dias em casa, para por as
idéias em ordem, mas Adam não quis. Precisava conversar a sós com Rebecca e
quando a moça ia a sua casa, a mãe sempre ficava por perto dando atenção à
garota e trazendo lanches e bebidas.
Entrou atrasado na sala e o professor parou a explicação para
cumprimentá-lo enquanto seus colegas lhe preparavam uma carteira e pediam para que
sentasse com eles.
– E ai cara? – perguntou Willian assim que Adam sentou-se ao seu lado –
Como vai a força?
– Estou bem. Acho – respondeu guardando a mochila embaixo da carteira.
– Já descobriram os assassinos? – perguntou Ana, uma morena de olhos
claros que escrevia para o jornal da universidade.
– Ainda não, mas os policiais estão otimistas, parece que já têm um
suspeito e devem divulgar alguma coisa em breve.
Ana ia perguntar mais, mas o professor interrompeu a discussão, chamando
a atenção dos alunos para a aula, que transcorreu normalmente o restante do
horário. No intervalo Rebecca veio sentar-se com ele e Willian no refeitório,
mas logo foram rodeados por colegas da classe e de outras turmas, ávidos por
notícias e atenção.
– Pessoal, deixem o Adam respirar. Ele passou por um momento difícil,
dêem um tempo pra ele. – disse Rebecca e pegou o alquimista pelo braço – Vamos
Adam, vamos nos sentar no gramado. – e saiu arrastando Adam pátio afora.
– Povo chato, parecem urubu em cima de carniça. – disse a cabalista
zangada assim que saíram da vista dos demais.
– Eu já esperava por isso. – respondeu Adam – Cidade pequena é assim
mesmo. Todo mundo quer saber da vida de todo mundo.
Rebecca resmungou alguma coisa e seguiram até o pátio externo, onde
soprava uma suave brisa de primavera. Rebecca amarrou os cabelos que teimavam
em esvoaçar ao vento e sentou-se embaixo de uma mangueira. A árvore começava a
enflorar e algumas flores pequenas acompanhavam o vento em movimentos
circulares. A cabalista pegou nas mãos de Adam e o encarou com perspectiva no
olhar.
– E então, vai me contar sua história?
Adam recolheu as mãos. Apesar de gostar da atenção da moça, não estava
disposto a expor sua vida pessoal tão abertamente, mas a Rebecca puxou suas mãos
novamente e as aconchegou entre as suas.
– Pode confiar em mim Adam. Sei exatamente pelo que você está passando.
Adam quase se declarou para Rebecca nesse momento, a proximidade e o
cheiro doce da cabalista faziam com que suas mãos suassem e seu coração batesse
em ritmo acelerado, tudo o que desejava naquele momento era deitar em seu colo
e esquecer o que passava ao redor, mas não era sobre seus sentimentos que
Rebecca queria saber, era sobre sua história como mago, e Adam sabia disso.
Retirou as mãos do colo da cabalista e desviou o olhar.
– Aqui não é um bom lugar. Vamos marcar no parque mais tarde, embaixo
daquela árvore frondosa, daí conversamos com mais tranquilidade. Aqui volta e
meia vai aparecer alguém para bisbilhotar.
Rebecca balançou a cabeça concordando.
– Tudo bem então Adam. Vamos marcar às 14:00 horas, está bom pra você?
– Pode ser – respondeu Adam – A gente aproveita e faz outro piquenique, o
último não deu muito certo não é.
Rebecca riu e ia comentar quando sinal tocou, indicando o fim do
intervalo. Adam se despediu e voltou para a sala se preparando para mais uma
rodada de perguntas e especulações, mas ao contrario do que imaginara, ninguém
mais tocou no assunto da morte de sua avó, apenas falavam sobre coisas banais e
corriqueiras como se o episodio do intervalo não houvesse acontecido.
O restante da aula transcorreu sem novidades, Adam, como sempre, prestava
pouca atenção ao que era dito pelo professor e contava os minutos para que o
sinal tocasse e pudesse conversar novamente com Rebecca na saída, mas assim que
ele tocou e todos se prepararam para sair, o Sr. Manoel fez sinal para que ele
aguardasse um pouco.
– Percebi que esteve meio distante
na aula hoje Adam. Sei que é difícil perder um ente querido, mas você precisa
se animar; a vida continua rapaz. – disse o professor enquanto puxava uma
cadeira e se sentava ao lado de Adam.
– Eu sei professor. Vou me esforçar para estar mais animado nas próximas
aulas, mas minha avó era minha última família por parte do meu pai e o jeito
como ela morreu me deixou muito triste.
– Eu entendo Adam. No seu lugar também estaria deprimido, mas não cabe a
nós, meros mortais, entender os desígnios do Criador, cabe a nós apenas aceitar
que tudo o que Ele faz é reto e necessário. Ninguém quer perder um parente,
principalmente um parente querido, mas nós podemos tirar lições das ações do
Criador e nos basearmos nela para que sua ira não recaia também sobre nós.
– Espera aí professor, o senhor está querendo dizer que o assassinato
cruel de minha avó foi um castigo pela vida que ela levou?
– Quem sou eu pra julgar as pessoas filho, mas sua avó tinha fama de
brincar com coisas que seria melhor deixar olvidado e, muitas vezes, as
tragédias são conseqüências diretas das escolhas que fazemos.
O professor tentou consolar Adam, estendendo a mão para tocar em seu
ombro, mas o alquimista recuou repulsado.
– Não quero que pense mal de mim filho. – continuou o professor – Se digo
isso é para o seu bem. Se estiver disposto podemos ir até minha casa orarmos
pela alma de sua avó e pedir que o Senhor conforte seu coração quebrantado,
tenho certeza que...
– Obrigado professor – respondeu Adam rapidamente – mas tenho que ir.
Rebecca aceitou me ajudar com os estudos hoje a tarde e não quero deixá-la
esperando. Obrigado novamente e até amanhã.
– Todo bem filho, vamos deixar para outra hora então. Vá com Deus e não
se esqueça, o futuro não pertence a nós.
Adam acenou com a cabeça e saiu. Sentia se zonzo, pensando sobre tudo o
que o professor tinha dito a respeito de si e de sua avó. O Sr. Manoel sempre
fora meio estranho, fanático religioso e metido a conselheiro da escola e,
talvez por ser o mais velho da instituição, se sentia na responsabilidade de aconselhar
a todos, no entanto, a forma como ele se referiu a sua avó fez com que Adam
perdesse o pouco do respeito que nutria pelo idoso.
Chegou em casa anuviado e com a estranha sensação que algo de ruim iria
acontecer. Sua mãe o esperava para o almoço e, como sempre, perguntou como ele
passara o dia. Adam tentou desconversar, dizendo que tudo correra normalmente,
mas o semblante carregado acabou por denunciá-lo.
– O que aconteceu na faculdade que te deixou com essa cara de poucos
amigos? A Rebecca não te convidou para sair hoje?
– Não mãe. Não tem nada a ver com a Rebecca. Só estou meio chateado pela
forma como algumas pessoas trataram o assassinato da vovó.
– Ah! As pessoas são assim mesmo. Ávidas por fofocas. Não esquente que
logo esquecem o caso. O que você vai fazer à tarde? Se estiver livre podemos
passear no shopping? O que acha?
– Não vai dar mãe. Marquei com Rebecca no parque. Fica pra outra hora.
Pode ser?
– Claro bebê. Eu tinha mesmo que adiantar um serviço do escritório.
Aqueles seus amigos bagunceiros vão também, ou é apenas você e a Rebecca?
Dona Rute não aprovava o comportamento de Willian e Lisa e sempre que
eles os visitavam ficava de mau humor, temendo que o comportamento folgado dos
dois pudesse influenciar seu filho.
– Só eu e a Rebecca mãe – Adam respondeu por fim. – E eles não são
bagunceiros, só... Bem deixa pra lá. Vou deitar um pouco, estou meio cansado.
– Isso filho. Descanse um pouco. Vou lavar a louça e depois vou pro meu
quarto trabalhar. Qualquer coisa me chame ok?
Adam consentiu com a cabeça e subiu para seu quarto. O sol do meio-dia
irradiava pela janela e ele teve que fechar as cortinas. Deitou, mas não
conseguiu dormir. Ficava pensando se Rebecca estava realmente interessada nele,
ou se era apenas a maneira como ela normalmente tratava as pessoas. Por fim
decidiu que hoje tomaria a iniciativa. Ia dar um ultimato a Rebecca e se não
desse em nada, pelo menos tirava a dúvida da cabeça.
Levantou uma hora depois, decidido a adiantar o encontro. Tomou um banho
e se arrumou, tomando o cuidado de não deixar o quarto bagunçado. Às vezes
depois dos passeios, Rebecca ia a sua casa e subiu para seu quarto para
conversarem a sós e se estivesse bagunçado ela o olhava com ar de reprovação.
Desceu para a sala, pegou a carteira e saiu, tentando não fazer barulho
que denunciasse sua saída para evitar ter que dar mais explicações. Sua mãe era
sempre muito curiosa no que se referia a Rebecca e gostava de insinuar que eles
estavam namorando. Quem sabe a partir de
hoje, pensou ganhando a estrada e partindo em direção ao parque.
Chegou ao local antes de Rebecca e aproveitou para apreciar a paisagem. O
parque estava tranqüilo, apesar de ter certo movimento à beira do lago. Alguns
rapazes brincavam de bola e outros jogavam sinuca em uma mesa que ficava em um
quiosque embaixo de um arvoredo. Adam conseguiu identificar alguns colegas da
faculdade jogando, mas não quis se aproximar para não chamar a atenção dos
amigos e atrapalhar seu encontro com Rebecca.
Certa de meia hora depois Rebecca chegou. Carregava uma mochila nas
costas e uma caixa térmica em uma das mãos enquanto tentava equilibrar o peso,
pendendo o corpo para o lado aposto. Acenou para Adam ao vê-lo perto do lago e
se aproximou ofegante.
– Oi. Atrasei-me um pouco. Estava difícil achar uma roupa que combinasse.
– Adam deu uma olhada de cima a baixo para averiguar o figurino da cabalista.
Estava vestida com uma calça legging cinza e top azul decotado, tênis de
passeio e uma fita azul prendendo o cabelo num rabo-de-cavalo.
– Pelo menos a espera valeu à pena – respondeu Adam sorrindo – Você ficou
muito bonita.
Rebecca sorriu e sentou na relva em frente a Adam. Estendeu a manta ao
lado das cinzas de uma fogueira, provavelmente deixada ali por algum campista
descuidado, e dispôs os aperitivos e as bebidas no centro, para que ficasse
entre os dois e facilitasse o acesso. Curvou-se para frente para dar um
beijinho no rosto de Adam e pegou uma latinha de refrigerante suspirando.
– Ufa! A caixa estava pesada. Acho que exagerei nos comes.
– Eu não trouxe nada. – respondeu Adam com um sorriso amarelo – Me
esqueci.
– Não esquente. Eu trouxe o suficiente para nós dois. – abriu o
refrigerante e tomou um gole – Como vai sua mãe?
– Vai bem. – respondeu Adam pegando um salgadinho – Ela mandou
lembranças. Hum! Me passe o refrigerante. Obrigado!
– Quando estava vindo para cá – começou Rebecca – pensei no que você me
disse em sua casa outro dia. Sobre a herança que seu avô lhe deixou e as
instruções para continuarmos a busca. A partir de quando você tomou ciência de
que era o descendente prometido? E por que você acha que os alquimistas foram
escolhidos para comandar essa busca?
– Bem. Não tenho respostas para todas essas perguntas Rebecca. O que
posso fazer é contar o que sei. Talvez quando estiver a par de tudo você
compreenda melhor que eu.
Rebecca concordou com a cabeça, enquanto Adam se ajeitava sobre a manta
para iniciar seu discurso.
Tive uma infância divertida, apesar
de ser diferente das outras crianças. Minha avó me dizia que os inaptos não
entendiam o nosso dom e, por isso, tínhamos de ser reservados quanto a eles.
Frequentei sua casa diversas vezes e ela sempre me tratou muito bem. Fazia
doces de abóbora e mamão, e sucos de laranja e abacaxi sempre que sabia que
íamos visitá-la. A chácara era próspera aquele tempo. Havia canteiros de
hortaliças e plantações de legumes e mandioca, e a casa, que ultimamente estava
caindo aos pedaços, era bem conservada e limpa.
Meu pai que me levava. Ele não
gostava dos assuntos de magia e desmentia tudo que minha avó me ensinava quando
íamos embora, mas eu sabia que a magia era real, tinha provas disso, mesmo
ainda não tendo idade para realizar nenhum rito.
Na escola, meu jeito tímido e
reservado me manteve afastado dos outros garotos, que me desprezavam e me
tratavam como “filhinho da mamãe”, mesmo quando os ajudava nos estudos e
trabalhos de escola. Sempre fui inteligente. Tirava as melhores notas e era
elogiado pelos professores, o que servia apenas para aumentar minha rejeição
pelos colegas que me invejavam.
Na adolescência minha situação
melhorou. A magia começou a se manifestar em mim e, graças a ela, fiz amizade
com Willian e Lisa. Também acertei minha relação com os outros colegas que
notaram minhas novas companhias e se aproximaram pouco a pouco. Willian era
conversador e popular, e me arrastava para todos os lugares fazendo com que eu
me enturmasse com os outros rapazes, mesmo a contragosto. Lisa não era
diferente. Promovia festas em sua casa e me obrigava a participar, sempre
fazendo questão de me apresentar para as amigas e forçar uma amizade.
Conheci os dois de forma inusitada.
Estava indo para a escola quando vi um Rottwailer escapar do seu quintal e
atacar o casal que passava perto do seu portão. Willian, na época com quatorze
anos, ficou aterrorizado e fugiu, deixando a colega a mercê do animal. Liza
gritou apavorada, o que fez com que o animal ficasse ainda mais nervoso e se
preparasse para atacar. Foi quando eu intervi.
Corri para o local e acalmei o cão, alegando que a menina não oferecia
uma ameaça a ele e que foi simplesmente o acaso que os levou até ali. Demorou
um pouco, mas consegui tranqüilizar o cachorro até o dono chegar com uma
coleira e o levar para dentro. Willian, que observava tudo de cima de uma
árvore, desceu e veio falar comigo, me felicitando pela coragem enquanto Lisa,
ainda em estado de choque, chorava agachada ao lado do muro. Esse incidente me
despertou. Percebi que podia usar meu dom para ajudar as pessoas e, apesar de
ainda continuar tímido, agora me sentia mais confiante para estabelecer
amizades e participar de eventos.
Minha avó não gostava das minhas
amizades. Ela dizia que eu devia ter amigos do Círculo e uma vez, chegou a
trazer alguns garotos de minha idade para nos conhecermos, mas meu pai inventou
uma desculpa e me levou embora. Depois desse dia, ela meio que desistiu de me
aproximar de outros alquimistas, mas me contava histórias de personagens
famosos e de meu avô, que segundo ela, fora um grande mago. Quando estava
empolgada, abria o livro vermelho e, com orgulho, me mostrava as canções
registradas por ele, ou fazia pequenos ritos para me entreter, cantando uma musiqueta
e fazendo coisas acontecerem. Uma vez acendeu o fogão a lenha sem usar fósforos
ou algo que o valha e, em outra, curou um pequeno ferimento que eu havia
sofrido quase instantaneamente, usando apenas uma gota do meu sangue na troca.
O sangue é muito poderoso - dizia minha avó – e os maiores ritos são feitos com
ele.
Meu pai não aprovava esses rituais
e dizia que a velhota estava usando truques para me iludir, mas não sabia
explicar como os ferimentos se curavam, então não me convencia muito. Vovô
dizia que os alquimistas não eram especialistas em magias de cura, mas podiam
fazer trocas simples e curar pequenos ferimentos. Dizem – dizia ela – que os Bloods conseguem
curar até mesmo doenças graves, mas é difícil ter certeza já que não há nenhum
rito de cura avançada registrado por eles no livro vermelho. Meu avô, por outro
lado, registrou alguns ritos de cura simples, o que criou certo atrito entre os
Ocher e os Bloods e resultou na saída de Jason Blood da direção do Círculo
Vermelho e conseqüentemente, das rodas sociais da nossa família, mas minha avó
não gostava de falar sobre isso. Ela dizia que seu marido não era culpado e que
os Bloods o acusaram por pura inveja e “dor de cotovelo”. Esse episódio abalou
meu avô, que se afastou do Círculo e decidiu seguir sozinho, seu projeto de
mudar o mundo, deixando para trás, minha avó e meu pai, que, revoltado, jurou
não seguir os seus passos e nunca abandonar a família, quando tivesse uma.
Apesar da promessa, meu pai ficava
pouco tempo em casa. Com seu emprego na ONU, estava sempre viajando e minha mãe
acabou tendo que abandonar o emprego que conseguira numa empresa de advocacia
para cuidar melhor da casa e de mim. Quando, porém, ele estava em casa, sempre dedicava
a nós, todo seu tempo livre. Levava-me para passear e comer fora e sempre havia
festas. Ele convidava os amigos e parentes para comemorar seu retorno, mas
minha avó nunca ia. Minha mãe dizia que ela não aprovava o casamento do filho
com uma “inapta” e que a decisão dele fora um choque para a velhinha. Ela
queria que o filho seguisse a tradição e se casasse com uma mulher estranha;
uma ruiva libertina e prepotente, apenas pelo fato dela pertencer à antiga família
dos Reds, coisa que, segundo ela, era muito importante.
Apesar dos problemas com minha mãe,
não deixei de visitar minha avó. Queria aprender sobre a alquimia, as trocas e
sobre a história da minha classe.
Ela me ensinava com toda a
paciência. Falava-me sobre a tradição
dos alquimistas. Sobre as cinco grandes famílias e sua importância no cenário
mágico mundial. Falava dos Reds, dos Rubys, dos Bloods, dos Crimsons e claro,
de nós os Ochers, sempre ressaltando a importância que cada uma tivera na
criação e manutenção do Círculo e do Livro Vermelho. Ela própria pertencera aos
Ruby antes de se casar com meu avô e fora muito rica. Grande parte do dinheiro
usado por ele em suas expedições veio dos cofres da família dela que apoiava e
financiava seus projetos, inclusive o último, que o levou a uma viajem sem
volta para os confins da terra.
Até bem pouco tempo não sabia o que tinha
levado meu avô a desaparecer, pois minha avó sempre desconversava e mudava o
rumo da conversa quando eu perguntava. Das poucas vezes que consegui arrancar
algo dela ela dizia que ele saíra pelo mundo buscando artefatos mágicos que
possibilitariam mudar o destino da humanidade, mas infelizmente algo dera
errado em sua jornada e ele nunca mais retornou. Ela atribuía esse infortúnio
às parcerias que ele havia formado. Não confiava em necromantes e ladinos e a
presença deles em sua casa, sempre fora motivo de discussão entre eles. No fim meu
avô desapareceu e, depois de um tempo, minha avó recebeu seus pertences pelo
correio, selados numa arca de madeira. Meu pai sugeriu que ela colocasse fogo
em tudo e acabasse com aquela história, mas ela se recusava dizendo que aquilo era
a herança da família e que, um dia, tudo seria útil.
– O resto da história você já conhece. – concluiu Adam – Meu pai morreu e
minha avó me passou o baú com as coisas de meu avô pouco antes de morrer
também, e agora aqui estamos nós, discutindo sobre o que fazer com elas.
Rebecca levantou-se para responder, mas uma estranha movimentação atraiu
sua atenção. O grupo de jovens que jogava sinuca no quiosque em meio ao
arvoredo movia-se rapidamente em direção ao casal, brandindo os tacos de sinuca,
levantados em posição ameaçadora. Adam
virou-se para olhar o que chamara a atenção da cabalista, mas pensou que os
amigos estavam de brincadeira, ameaçando-o por não convidá-los para o
piquenique.
– Nem adianta pessoal. Os salgados são exclusivos para os alunos do 2º
ano e...
Adam não terminou a frase, pois o colega mais próximo atingiu-o, com toda
a força, com o taco em sua cabeça, fazendo com que ele caísse para trás,
protegendo o rosto com os braços. O taco partiu-se em dois e voou para perto de
Rebecca, que se desviou e abaixou para ajudar Adam a levantar.
– O que significa isso? – perguntou Adam se apoiando na cabalista para se
levantar. – Vocês ficaram loucos? – e afastou Rebecca que se posicionara em sua
frente para protegê-lo.
Os olhos dos rapazes estavam fixos, como se olhassem sem realmente
enxergar e se moviam perigosamente para cima do casal.
– Não adianta Adam. Eles estão sendo controlados – disse Rebecca quando
Adam abriu a boca para tentar conseguir uma explicação.
– Hahahaha – veio a risada grave e gutural – Esperava mais de você Adam
Ocher. Até a sua bela acompanhante percebeu o óbvio – fez um movimento com as
mãos, parando o grupo que se aproximavam do casal e encarou Rebecca como se
curioso – A propósito, ela não me parece uma alquimista, com esse rosto pálido
e olhos azuis. Está se relacionando com inaptos alquimista?
– Quem são vocês e o que querem da gente? – disse Adam se virando para o
estranho grupo que se aproximava, vindo de perto do lago e achou estranhou não
ter reparado neles antes. O grupo era no mínimo exótico; o interlocutor era
alto e magro, com cabelos pretos e lisos, olhar severo e semblante carregado. Tinha
uma voz grave e usava uma roupa escura e espessa apesar do calor que fazia
naquele momento. O rapaz ao seu lado não era mais comum. Era loiro e usava uma camiseta
verde fluorescente e bermuda branca que ficava relativamente apertada cobrindo
o corpo rechonchudo, cobria os olhos com óculos escuros e parecia estar se
divertindo com a situação. A única menos estranha do grupo era uma bela moça de
cabelos prateados que segurava a mão do rapaz loiro.
– Ora não se faça de tolo alquimista – disse o rapaz de preto – Sabe
muito bem quem eu sou e o que vim buscar. Quero os artefatos do meu avô e você
à de me entregá-los, por bem ou por mal. – moveu novamente as mãos e o grupo de
rapazes se mexeu como que se comandados por fios invisíveis.
– Você só pode ser maluco – respondeu Adam irritado. Sua cabeça ainda
doía da pancada e suas pernas tremiam de irritação quando se virou para a
cabalista a espera de uma resposta para aquela situação.
– A inapta não vai poder ajudá-lo alquimista – zombou o rapaz de preto – mas
vou ser legal e permitir que você a mande embora daqui sem ferimentos.
– Vou te mostrar quem é a inapta necromante – respondeu Rebecca levantando
os braços e cruzando-os, formando pentagramas azuis e envolvendo seu corpo com
uma aura azul celeste. Seu cabelo começou a esvoaçar, como se um forte vento o
tivesse circundando e seu rosto contorceu-se de dor quando fechou os olhos e
sussurrou lentamente.
XXXIX
CANÇÃO DO LIVRO AZUL
A aura se expandiu e se concentrou em seu rosto quando Rebecca abriu os
olhos. Suas pupilas haviam desaparecido e o azul celeste cobria toda a extensão
de sua vista. Os círculos dançaram em torno de seus pés, subindo e descendo em
volta de seu corpo, no momento em que a cabalista iniciou o canto:
Prece sincera, pedido a fazer;
Escudo sagrado, antigo poder;
Alvedrio comprado, benção provida;
Encargo quitado e oferta servida.
Permuta sincera, vontade real;
Sopro de vida, declínio do mal;
Arco celeste, barrando o impuro;
Abrigo seguro. Eu contribuo.
A luz que se concentrava em seus olhos, projetou-se de em direção ao céu
subindo como um raio até desaparecer em meio às nuvens, um brilho celeste ainda
pairava no ar quando a luz voltou e se desmanchou sobre a calista formando uma
abóboda que se expandiu e envolveu o casal num invólucro de luz azul. Os
agressores que tentavam atravessar a barreira cintilante agitavam-se e caiam
desmaiados enquanto a cabalista se escorava em Adam tentando manter a
consciência.
– Nada mal para uma cabalista – zombou Thomas – mas vamos ver se você
consegue manter essa barreira com a cabeça nas nuvens – e moveu os braços
impedindo que mais rapazes entrassem na barreira de luz.
Rebecca olhou para Adam tentando entender o motivo do gracejo do
necromante, quando o outro rapaz retirou os óculos e começou a entoar um canto.
A música falava sobre carvalhos e prisões e Adam tentou se lembrar de onde
ouvira algo semelhante. O vento ficava mais forte a medida que a canção se
desenrolava e formava pequenos turbilhões, balançando as árvores ao redor.
Instintivamente pôs-se na frente de Rebecca para protegê-la, mas era tarde
demais. O ranger terminou o canto e moveu os braços sobre o casal fazendo com
as árvores ganhassem vida e descessem seus galhos sobre eles, jogando Adam de encontro
ao seu tronco. O alquimista sofreu o impacto no meio das costelas e sentiu
algumas se quebrarem, mas Rebecca parecia estar em situação pior. O outro galho
apanhou a cabalista pela cintura e a ergueu acima da copa. Rebecca gritou, mas
não havia nada que pudesse fazer. A árvore balançava os galhos descendo e
subindo a cabalista que parecia desesperada enquanto o invólucro de luz azul
desaparecia no ar.
– Esmague-a! – gritou Thomas para Wesley – Espalhe suas tripas pelo
parque e o alquimista verá que não estamos para brincadeiras.
Adam viu um vislumbre de dúvida nos olhos do ranger e aproveitou a deixa
para se levantar. Wesley, apesar de acompanhar e apoiar Thomas, não parecia
muito disposto a derramar o sangue de pessoas que, talvez, fossem inocentes. Ponderava
que Thomas poderia ter se enganado, ou talvez eles tivessem um motivo para
fazerem o que fizeram.
Rebecca se debatia presa aos galhos enquanto o necromante ria. Adam
reuniu todas as suas forças e se levantou, escorando-se na árvore, para examinar
a situação. Sabia que sua vida e a de Rebecca dependeriam do rito que executaria
em seguida e que não teria segunda chance. Se não resolvesse a contenda em um
único lance Rebecca poderia pagar com a vida. O vento ficou mais forte e uma
nuvem cinzenta emergiu da fogueira deixada pelos seus antecessores, irritando
seus olhos e prejudicando sua visão.
Adam abaixou-se e desenhou, com um galho, um pentagrama em meio às cinzas.
Fechou os olhos ignorando a tontura e recitou lentamente:
LXXIV CANÇÃO DO LIVRO VERMELHO
Abriu os olhos lentamente tentando focar a visão. Suas pupilas dilatadas e
vermelhas se fundiam com a íris em brasa. Fixou o olhar no círculo e sussurrou
o canto.
Chama robusta, distúrbio termal;
Circo vermelho, escambo formal;
Oferta rogada, esforço medido;
Rito forçado e destino cumprido.
Ave lendária, das cinzas renasce;
Estrela de fogo, ditoso enlace;
Assalto frustrado, anseio tropeço;
Sinistro de chamas. Eu ofereço!
O círculo incendiou. Chamas vermelho vivo seguiam o contorno como se
pólvora tivesse sido espalhada sobre ele e levantavam labaredas incandescentes.
Quando o círculo de fogo se uniu, as chamas subiram aos céus, formando uma estrela
vermelha que explodiu e desceu em formato de uma ave, enorme e ardente, pousando
sobre o círculo de cinzas e apontando o bico em chamas na direção de seus
opositores. As cinzas desapareceram e o alquimista se levantou, com o grande
pássaro vermelho pairando sobre sua cabeça.
Com um movimento de Adam a fênix disparou, circundando os presentes,
queimando a grama por onde passava e chamuscando as roupas dos controlados que
eram atirados para o lado pela força da investida. O sorriso morreu no rosto de Thomas quando
viu que a ave vinha em sua direção. Tentou correr para o lado, mas já era tarde
demais. Por sorte Wesley moveu os galhos das árvores para frente e absolveu a
maior parte do choque, mesmo assim o impacto foi grande o suficiente para
atirá-los à borda do lago, enquanto os carvalhos ao redor pegavam fogo,
libertando Rebecca, que caiu de mau jeito ao lado do Alquimista.
Uma multidão começava a se aglomerar a volta da confusão e Adam não sabia
se fugia com Rebecca e deixava tudo como estava ou terminava o serviço, dando o
golpe final nos três agressores que o atacaram. Decidiu em primeiro lugar
ajudar Rebecca. A cabalista tinha caído de costa e estava com dificuldades para
respirar, então Adam colocou-a de pé, se apoiando em seu ombro, e olhou ao
redor, procurando pelo trio desconhecido. Thomas já estava de pé, com os olhos
totalmente negros, limpando a sujeira da roupa, enquanto Mariah ajudava Wesley
a se levantar. O Ranger parecia ter sofrido a maior parte do ataque e estava
zonzo, como se tivesse batido a cabeça ao cair. Rebecca se recuperou e insistiu
com Adam para saírem dali, mas Thomas não parecia a fim de encerrar a disputa.
Sacou uma faca de serra do bolso traseiro da calça e puxou a manga da blusa,
descobrindo o pulso e expondo a pele esbranquiçada.
– NÃO! – gritou Mariah quando percebeu o que Thomas pretendia fazer –
Isso de novo não! – e se jogou sobre o necromante, caindo com ele dentro do
lago e espantando os cisnes que vagavam por ali.
Wesley olhou ao redor sem saber o que fazer, mas por fim decidiu ajudar o
primo e a namorada que lutavam para chegar à margem. Adam aproveitou a deixa. Colocou
Rebecca nos ombros e correu para o carro, deixando uma multidão perplexa e o
bosque em chamas atrás de si, enquanto Thomas gritava, ensopado e furioso, que
ainda se encontrariam novamente.
***
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