quinta-feira, 18 de agosto de 2011

CAPÍTULO VIII


O ENCONTRO


Uma moça sorriu e acenou para Adam no primeiro dia de aula na faculdade depois do luto pela morte da avó. A notícia se espalhara rapidamente e, depois do enterro, sempre aparecia alguém para lhe apresentar as condolências e desejar força. Sua mãe lhe pedira para ficar mais uns dias em casa, para por as idéias em ordem, mas Adam não quis. Precisava conversar a sós com Rebecca e quando a moça ia a sua casa, a mãe sempre ficava por perto dando atenção à garota e trazendo lanches e bebidas.
Entrou atrasado na sala e o professor parou a explicação para cumprimentá-lo enquanto seus colegas lhe preparavam uma carteira e pediam para que sentasse com eles.
– E ai cara? – perguntou Willian assim que Adam sentou-se ao seu lado – Como vai a força?
– Estou bem. Acho – respondeu guardando a mochila embaixo da carteira.
– Já descobriram os assassinos? – perguntou Ana, uma morena de olhos claros que escrevia para o jornal da universidade.
– Ainda não, mas os policiais estão otimistas, parece que já têm um suspeito e devem divulgar alguma coisa em breve.
Ana ia perguntar mais, mas o professor interrompeu a discussão, chamando a atenção dos alunos para a aula, que transcorreu normalmente o restante do horário. No intervalo Rebecca veio sentar-se com ele e Willian no refeitório, mas logo foram rodeados por colegas da classe e de outras turmas, ávidos por notícias e atenção.
– Pessoal, deixem o Adam respirar. Ele passou por um momento difícil, dêem um tempo pra ele. – disse Rebecca e pegou o alquimista pelo braço – Vamos Adam, vamos nos sentar no gramado. – e saiu arrastando Adam pátio afora.
– Povo chato, parecem urubu em cima de carniça. – disse a cabalista zangada assim que saíram da vista dos demais.
– Eu já esperava por isso. – respondeu Adam – Cidade pequena é assim mesmo. Todo mundo quer saber da vida de todo mundo.
Rebecca resmungou alguma coisa e seguiram até o pátio externo, onde soprava uma suave brisa de primavera. Rebecca amarrou os cabelos que teimavam em esvoaçar ao vento e sentou-se embaixo de uma mangueira. A árvore começava a enflorar e algumas flores pequenas acompanhavam o vento em movimentos circulares. A cabalista pegou nas mãos de Adam e o encarou com perspectiva no olhar.
– E então, vai me contar sua história?
Adam recolheu as mãos. Apesar de gostar da atenção da moça, não estava disposto a expor sua vida pessoal tão abertamente, mas a Rebecca puxou suas mãos novamente e as aconchegou entre as suas.
– Pode confiar em mim Adam. Sei exatamente pelo que você está passando.
Adam quase se declarou para Rebecca nesse momento, a proximidade e o cheiro doce da cabalista faziam com que suas mãos suassem e seu coração batesse em ritmo acelerado, tudo o que desejava naquele momento era deitar em seu colo e esquecer o que passava ao redor, mas não era sobre seus sentimentos que Rebecca queria saber, era sobre sua história como mago, e Adam sabia disso. Retirou as mãos do colo da cabalista e desviou o olhar.
– Aqui não é um bom lugar. Vamos marcar no parque mais tarde, embaixo daquela árvore frondosa, daí conversamos com mais tranquilidade. Aqui volta e meia vai aparecer alguém para bisbilhotar.
Rebecca balançou a cabeça concordando.
– Tudo bem então Adam. Vamos marcar às 14:00 horas, está bom pra você?
– Pode ser – respondeu Adam – A gente aproveita e faz outro piquenique, o último não deu muito certo não é.
Rebecca riu e ia comentar quando sinal tocou, indicando o fim do intervalo. Adam se despediu e voltou para a sala se preparando para mais uma rodada de perguntas e especulações, mas ao contrario do que imaginara, ninguém mais tocou no assunto da morte de sua avó, apenas falavam sobre coisas banais e corriqueiras como se o episodio do intervalo não houvesse acontecido.
O restante da aula transcorreu sem novidades, Adam, como sempre, prestava pouca atenção ao que era dito pelo professor e contava os minutos para que o sinal tocasse e pudesse conversar novamente com Rebecca na saída, mas assim que ele tocou e todos se prepararam para sair, o Sr. Manoel fez sinal para que ele aguardasse um pouco.
 – Percebi que esteve meio distante na aula hoje Adam. Sei que é difícil perder um ente querido, mas você precisa se animar; a vida continua rapaz. – disse o professor enquanto puxava uma cadeira e se sentava ao lado de Adam.
– Eu sei professor. Vou me esforçar para estar mais animado nas próximas aulas, mas minha avó era minha última família por parte do meu pai e o jeito como ela morreu me deixou muito triste.
– Eu entendo Adam. No seu lugar também estaria deprimido, mas não cabe a nós, meros mortais, entender os desígnios do Criador, cabe a nós apenas aceitar que tudo o que Ele faz é reto e necessário. Ninguém quer perder um parente, principalmente um parente querido, mas nós podemos tirar lições das ações do Criador e nos basearmos nela para que sua ira não recaia também sobre nós. 
– Espera aí professor, o senhor está querendo dizer que o assassinato cruel de minha avó foi um castigo pela vida que ela levou?
– Quem sou eu pra julgar as pessoas filho, mas sua avó tinha fama de brincar com coisas que seria melhor deixar olvidado e, muitas vezes, as tragédias são conseqüências diretas das escolhas que fazemos.
O professor tentou consolar Adam, estendendo a mão para tocar em seu ombro, mas o alquimista recuou repulsado.
– Não quero que pense mal de mim filho. – continuou o professor – Se digo isso é para o seu bem. Se estiver disposto podemos ir até minha casa orarmos pela alma de sua avó e pedir que o Senhor conforte seu coração quebrantado, tenho certeza que...
– Obrigado professor – respondeu Adam rapidamente – mas tenho que ir. Rebecca aceitou me ajudar com os estudos hoje a tarde e não quero deixá-la esperando. Obrigado novamente e até amanhã.
– Todo bem filho, vamos deixar para outra hora então. Vá com Deus e não se esqueça, o futuro não pertence a nós.
Adam acenou com a cabeça e saiu. Sentia se zonzo, pensando sobre tudo o que o professor tinha dito a respeito de si e de sua avó. O Sr. Manoel sempre fora meio estranho, fanático religioso e metido a conselheiro da escola e, talvez por ser o mais velho da instituição, se sentia na responsabilidade de aconselhar a todos, no entanto, a forma como ele se referiu a sua avó fez com que Adam perdesse o pouco do respeito que nutria pelo idoso.
Chegou em casa anuviado e com a estranha sensação que algo de ruim iria acontecer. Sua mãe o esperava para o almoço e, como sempre, perguntou como ele passara o dia. Adam tentou desconversar, dizendo que tudo correra normalmente, mas o semblante carregado acabou por denunciá-lo.
– O que aconteceu na faculdade que te deixou com essa cara de poucos amigos? A Rebecca não te convidou para sair hoje?
– Não mãe. Não tem nada a ver com a Rebecca. Só estou meio chateado pela forma como algumas pessoas trataram o assassinato da vovó.
– Ah! As pessoas são assim mesmo. Ávidas por fofocas. Não esquente que logo esquecem o caso. O que você vai fazer à tarde? Se estiver livre podemos passear no shopping? O que acha?
– Não vai dar mãe. Marquei com Rebecca no parque. Fica pra outra hora. Pode ser?
– Claro bebê. Eu tinha mesmo que adiantar um serviço do escritório. Aqueles seus amigos bagunceiros vão também, ou é apenas você e a Rebecca?
Dona Rute não aprovava o comportamento de Willian e Lisa e sempre que eles os visitavam ficava de mau humor, temendo que o comportamento folgado dos dois pudesse influenciar seu filho.
– Só eu e a Rebecca mãe – Adam respondeu por fim. – E eles não são bagunceiros, só... Bem deixa pra lá. Vou deitar um pouco, estou meio cansado.
– Isso filho. Descanse um pouco. Vou lavar a louça e depois vou pro meu quarto trabalhar. Qualquer coisa me chame ok?
Adam consentiu com a cabeça e subiu para seu quarto. O sol do meio-dia irradiava pela janela e ele teve que fechar as cortinas. Deitou, mas não conseguiu dormir. Ficava pensando se Rebecca estava realmente interessada nele, ou se era apenas a maneira como ela normalmente tratava as pessoas. Por fim decidiu que hoje tomaria a iniciativa. Ia dar um ultimato a Rebecca e se não desse em nada, pelo menos tirava a dúvida da cabeça.
Levantou uma hora depois, decidido a adiantar o encontro. Tomou um banho e se arrumou, tomando o cuidado de não deixar o quarto bagunçado. Às vezes depois dos passeios, Rebecca ia a sua casa e subiu para seu quarto para conversarem a sós e se estivesse bagunçado ela o olhava com ar de reprovação.
Desceu para a sala, pegou a carteira e saiu, tentando não fazer barulho que denunciasse sua saída para evitar ter que dar mais explicações. Sua mãe era sempre muito curiosa no que se referia a Rebecca e gostava de insinuar que eles estavam namorando. Quem sabe a partir de hoje, pensou ganhando a estrada e partindo em direção ao parque.
Chegou ao local antes de Rebecca e aproveitou para apreciar a paisagem. O parque estava tranqüilo, apesar de ter certo movimento à beira do lago. Alguns rapazes brincavam de bola e outros jogavam sinuca em uma mesa que ficava em um quiosque embaixo de um arvoredo. Adam conseguiu identificar alguns colegas da faculdade jogando, mas não quis se aproximar para não chamar a atenção dos amigos e atrapalhar seu encontro com Rebecca.
Certa de meia hora depois Rebecca chegou. Carregava uma mochila nas costas e uma caixa térmica em uma das mãos enquanto tentava equilibrar o peso, pendendo o corpo para o lado aposto. Acenou para Adam ao vê-lo perto do lago e se aproximou ofegante.
– Oi. Atrasei-me um pouco. Estava difícil achar uma roupa que combinasse. – Adam deu uma olhada de cima a baixo para averiguar o figurino da cabalista. Estava vestida com uma calça legging cinza e top azul decotado, tênis de passeio e uma fita azul prendendo o cabelo num rabo-de-cavalo.
– Pelo menos a espera valeu à pena – respondeu Adam sorrindo – Você ficou muito bonita.
Rebecca sorriu e sentou na relva em frente a Adam. Estendeu a manta ao lado das cinzas de uma fogueira, provavelmente deixada ali por algum campista descuidado, e dispôs os aperitivos e as bebidas no centro, para que ficasse entre os dois e facilitasse o acesso. Curvou-se para frente para dar um beijinho no rosto de Adam e pegou uma latinha de refrigerante suspirando.
– Ufa! A caixa estava pesada. Acho que exagerei nos comes.
– Eu não trouxe nada. – respondeu Adam com um sorriso amarelo – Me esqueci.
– Não esquente. Eu trouxe o suficiente para nós dois. – abriu o refrigerante e tomou um gole – Como vai sua mãe?
– Vai bem. – respondeu Adam pegando um salgadinho – Ela mandou lembranças. Hum! Me passe o refrigerante. Obrigado!
– Quando estava vindo para cá – começou Rebecca – pensei no que você me disse em sua casa outro dia. Sobre a herança que seu avô lhe deixou e as instruções para continuarmos a busca. A partir de quando você tomou ciência de que era o descendente prometido? E por que você acha que os alquimistas foram escolhidos para comandar essa busca?
– Bem. Não tenho respostas para todas essas perguntas Rebecca. O que posso fazer é contar o que sei. Talvez quando estiver a par de tudo você compreenda melhor que eu.
Rebecca concordou com a cabeça, enquanto Adam se ajeitava sobre a manta para iniciar seu discurso.
Tive uma infância divertida, apesar de ser diferente das outras crianças. Minha avó me dizia que os inaptos não entendiam o nosso dom e, por isso, tínhamos de ser reservados quanto a eles. Frequentei sua casa diversas vezes e ela sempre me tratou muito bem. Fazia doces de abóbora e mamão, e sucos de laranja e abacaxi sempre que sabia que íamos visitá-la. A chácara era próspera aquele tempo. Havia canteiros de hortaliças e plantações de legumes e mandioca, e a casa, que ultimamente estava caindo aos pedaços, era bem conservada e limpa.
Meu pai que me levava. Ele não gostava dos assuntos de magia e desmentia tudo que minha avó me ensinava quando íamos embora, mas eu sabia que a magia era real, tinha provas disso, mesmo ainda não tendo idade para realizar nenhum rito.
Na escola, meu jeito tímido e reservado me manteve afastado dos outros garotos, que me desprezavam e me tratavam como “filhinho da mamãe”, mesmo quando os ajudava nos estudos e trabalhos de escola. Sempre fui inteligente. Tirava as melhores notas e era elogiado pelos professores, o que servia apenas para aumentar minha rejeição pelos colegas que me invejavam.
Na adolescência minha situação melhorou. A magia começou a se manifestar em mim e, graças a ela, fiz amizade com Willian e Lisa. Também acertei minha relação com os outros colegas que notaram minhas novas companhias e se aproximaram pouco a pouco. Willian era conversador e popular, e me arrastava para todos os lugares fazendo com que eu me enturmasse com os outros rapazes, mesmo a contragosto. Lisa não era diferente. Promovia festas em sua casa e me obrigava a participar, sempre fazendo questão de me apresentar para as amigas e forçar uma amizade.
Conheci os dois de forma inusitada. Estava indo para a escola quando vi um Rottwailer escapar do seu quintal e atacar o casal que passava perto do seu portão. Willian, na época com quatorze anos, ficou aterrorizado e fugiu, deixando a colega a mercê do animal. Liza gritou apavorada, o que fez com que o animal ficasse ainda mais nervoso e se preparasse para atacar. Foi quando eu intervi.  Corri para o local e acalmei o cão, alegando que a menina não oferecia uma ameaça a ele e que foi simplesmente o acaso que os levou até ali. Demorou um pouco, mas consegui tranqüilizar o cachorro até o dono chegar com uma coleira e o levar para dentro. Willian, que observava tudo de cima de uma árvore, desceu e veio falar comigo, me felicitando pela coragem enquanto Lisa, ainda em estado de choque, chorava agachada ao lado do muro. Esse incidente me despertou. Percebi que podia usar meu dom para ajudar as pessoas e, apesar de ainda continuar tímido, agora me sentia mais confiante para estabelecer amizades e participar de eventos.
Minha avó não gostava das minhas amizades. Ela dizia que eu devia ter amigos do Círculo e uma vez, chegou a trazer alguns garotos de minha idade para nos conhecermos, mas meu pai inventou uma desculpa e me levou embora. Depois desse dia, ela meio que desistiu de me aproximar de outros alquimistas, mas me contava histórias de personagens famosos e de meu avô, que segundo ela, fora um grande mago. Quando estava empolgada, abria o livro vermelho e, com orgulho, me mostrava as canções registradas por ele, ou fazia pequenos ritos para me entreter, cantando uma musiqueta e fazendo coisas acontecerem. Uma vez acendeu o fogão a lenha sem usar fósforos ou algo que o valha e, em outra, curou um pequeno ferimento que eu havia sofrido quase instantaneamente, usando apenas uma gota do meu sangue na troca. O sangue é muito poderoso - dizia minha avó – e os maiores ritos são feitos com ele.
Meu pai não aprovava esses rituais e dizia que a velhota estava usando truques para me iludir, mas não sabia explicar como os ferimentos se curavam, então não me convencia muito. Vovô dizia que os alquimistas não eram especialistas em magias de cura, mas podiam fazer trocas simples e curar pequenos ferimentos.  Dizem – dizia ela – que os Bloods conseguem curar até mesmo doenças graves, mas é difícil ter certeza já que não há nenhum rito de cura avançada registrado por eles no livro vermelho. Meu avô, por outro lado, registrou alguns ritos de cura simples, o que criou certo atrito entre os Ocher e os Bloods e resultou na saída de Jason Blood da direção do Círculo Vermelho e conseqüentemente, das rodas sociais da nossa família, mas minha avó não gostava de falar sobre isso. Ela dizia que seu marido não era culpado e que os Bloods o acusaram por pura inveja e “dor de cotovelo”. Esse episódio abalou meu avô, que se afastou do Círculo e decidiu seguir sozinho, seu projeto de mudar o mundo, deixando para trás, minha avó e meu pai, que, revoltado, jurou não seguir os seus passos e nunca abandonar a família, quando tivesse uma.
Apesar da promessa, meu pai ficava pouco tempo em casa. Com seu emprego na ONU, estava sempre viajando e minha mãe acabou tendo que abandonar o emprego que conseguira numa empresa de advocacia para cuidar melhor da casa e de mim. Quando, porém, ele estava em casa, sempre dedicava a nós, todo seu tempo livre. Levava-me para passear e comer fora e sempre havia festas. Ele convidava os amigos e parentes para comemorar seu retorno, mas minha avó nunca ia. Minha mãe dizia que ela não aprovava o casamento do filho com uma “inapta” e que a decisão dele fora um choque para a velhinha. Ela queria que o filho seguisse a tradição e se casasse com uma mulher estranha; uma ruiva libertina e prepotente, apenas pelo fato dela pertencer à antiga família dos Reds, coisa que, segundo ela, era muito importante.
Apesar dos problemas com minha mãe, não deixei de visitar minha avó. Queria aprender sobre a alquimia, as trocas e sobre a história da minha classe.
Ela me ensinava com toda a paciência.  Falava-me sobre a tradição dos alquimistas. Sobre as cinco grandes famílias e sua importância no cenário mágico mundial. Falava dos Reds, dos Rubys, dos Bloods, dos Crimsons e claro, de nós os Ochers, sempre ressaltando a importância que cada uma tivera na criação e manutenção do Círculo e do Livro Vermelho. Ela própria pertencera aos Ruby antes de se casar com meu avô e fora muito rica. Grande parte do dinheiro usado por ele em suas expedições veio dos cofres da família dela que apoiava e financiava seus projetos, inclusive o último, que o levou a uma viajem sem volta para os confins da terra.
 Até bem pouco tempo não sabia o que tinha levado meu avô a desaparecer, pois minha avó sempre desconversava e mudava o rumo da conversa quando eu perguntava. Das poucas vezes que consegui arrancar algo dela ela dizia que ele saíra pelo mundo buscando artefatos mágicos que possibilitariam mudar o destino da humanidade, mas infelizmente algo dera errado em sua jornada e ele nunca mais retornou. Ela atribuía esse infortúnio às parcerias que ele havia formado. Não confiava em necromantes e ladinos e a presença deles em sua casa, sempre fora motivo de discussão entre eles. No fim meu avô desapareceu e, depois de um tempo, minha avó recebeu seus pertences pelo correio, selados numa arca de madeira. Meu pai sugeriu que ela colocasse fogo em tudo e acabasse com aquela história, mas ela se recusava dizendo que aquilo era a herança da família e que, um dia, tudo seria útil.
– O resto da história você já conhece. – concluiu Adam – Meu pai morreu e minha avó me passou o baú com as coisas de meu avô pouco antes de morrer também, e agora aqui estamos nós, discutindo sobre o que fazer com elas.
Rebecca levantou-se para responder, mas uma estranha movimentação atraiu sua atenção. O grupo de jovens que jogava sinuca no quiosque em meio ao arvoredo movia-se rapidamente em direção ao casal, brandindo os tacos de sinuca, levantados em posição ameaçadora.  Adam virou-se para olhar o que chamara a atenção da cabalista, mas pensou que os amigos estavam de brincadeira, ameaçando-o por não convidá-los para o piquenique.
– Nem adianta pessoal. Os salgados são exclusivos para os alunos do 2º ano e...
Adam não terminou a frase, pois o colega mais próximo atingiu-o, com toda a força, com o taco em sua cabeça, fazendo com que ele caísse para trás, protegendo o rosto com os braços. O taco partiu-se em dois e voou para perto de Rebecca, que se desviou e abaixou para ajudar Adam a levantar.
– O que significa isso? – perguntou Adam se apoiando na cabalista para se levantar. – Vocês ficaram loucos? – e afastou Rebecca que se posicionara em sua frente para protegê-lo.
Os olhos dos rapazes estavam fixos, como se olhassem sem realmente enxergar e se moviam perigosamente para cima do casal.
– Não adianta Adam. Eles estão sendo controlados – disse Rebecca quando Adam abriu a boca para tentar conseguir uma explicação.
– Hahahaha – veio a risada grave e gutural – Esperava mais de você Adam Ocher. Até a sua bela acompanhante percebeu o óbvio – fez um movimento com as mãos, parando o grupo que se aproximavam do casal e encarou Rebecca como se curioso – A propósito, ela não me parece uma alquimista, com esse rosto pálido e olhos azuis. Está se relacionando com inaptos alquimista?
– Quem são vocês e o que querem da gente? – disse Adam se virando para o estranho grupo que se aproximava, vindo de perto do lago e achou estranhou não ter reparado neles antes. O grupo era no mínimo exótico; o interlocutor era alto e magro, com cabelos pretos e lisos, olhar severo e semblante carregado. Tinha uma voz grave e usava uma roupa escura e espessa apesar do calor que fazia naquele momento. O rapaz ao seu lado não era mais comum. Era loiro e usava uma camiseta verde fluorescente e bermuda branca que ficava relativamente apertada cobrindo o corpo rechonchudo, cobria os olhos com óculos escuros e parecia estar se divertindo com a situação. A única menos estranha do grupo era uma bela moça de cabelos prateados que segurava a mão do rapaz loiro.
– Ora não se faça de tolo alquimista – disse o rapaz de preto – Sabe muito bem quem eu sou e o que vim buscar. Quero os artefatos do meu avô e você à de me entregá-los, por bem ou por mal. – moveu novamente as mãos e o grupo de rapazes se mexeu como que se comandados por fios invisíveis.
– Você só pode ser maluco – respondeu Adam irritado. Sua cabeça ainda doía da pancada e suas pernas tremiam de irritação quando se virou para a cabalista a espera de uma resposta para aquela situação.
– A inapta não vai poder ajudá-lo alquimista – zombou o rapaz de preto – mas vou ser legal e permitir que você a mande embora daqui sem ferimentos.
– Vou te mostrar quem é a inapta necromante – respondeu Rebecca levantando os braços e cruzando-os, formando pentagramas azuis e envolvendo seu corpo com uma aura azul celeste. Seu cabelo começou a esvoaçar, como se um forte vento o tivesse circundando e seu rosto contorceu-se de dor quando fechou os olhos e sussurrou lentamente.

XXXIX CANÇÃO DO LIVRO AZUL

A aura se expandiu e se concentrou em seu rosto quando Rebecca abriu os olhos. Suas pupilas haviam desaparecido e o azul celeste cobria toda a extensão de sua vista. Os círculos dançaram em torno de seus pés, subindo e descendo em volta de seu corpo, no momento em que a cabalista iniciou o canto:

Prece sincera, pedido a fazer;
Escudo sagrado, antigo poder;
Alvedrio comprado, benção provida;
Encargo quitado e oferta servida.

Permuta sincera, vontade real;
Sopro de vida, declínio do mal;
Arco celeste, barrando o impuro;
Abrigo seguro. Eu contribuo.

A luz que se concentrava em seus olhos, projetou-se de em direção ao céu subindo como um raio até desaparecer em meio às nuvens, um brilho celeste ainda pairava no ar quando a luz voltou e se desmanchou sobre a calista formando uma abóboda que se expandiu e envolveu o casal num invólucro de luz azul. Os agressores que tentavam atravessar a barreira cintilante agitavam-se e caiam desmaiados enquanto a cabalista se escorava em Adam tentando manter a consciência.
– Nada mal para uma cabalista – zombou Thomas – mas vamos ver se você consegue manter essa barreira com a cabeça nas nuvens – e moveu os braços impedindo que mais rapazes entrassem na barreira de luz.
Rebecca olhou para Adam tentando entender o motivo do gracejo do necromante, quando o outro rapaz retirou os óculos e começou a entoar um canto. A música falava sobre carvalhos e prisões e Adam tentou se lembrar de onde ouvira algo semelhante. O vento ficava mais forte a medida que a canção se desenrolava e formava pequenos turbilhões, balançando as árvores ao redor. Instintivamente pôs-se na frente de Rebecca para protegê-la, mas era tarde demais. O ranger terminou o canto e moveu os braços sobre o casal fazendo com as árvores ganhassem vida e descessem seus galhos sobre eles, jogando Adam de encontro ao seu tronco. O alquimista sofreu o impacto no meio das costelas e sentiu algumas se quebrarem, mas Rebecca parecia estar em situação pior. O outro galho apanhou a cabalista pela cintura e a ergueu acima da copa. Rebecca gritou, mas não havia nada que pudesse fazer. A árvore balançava os galhos descendo e subindo a cabalista que parecia desesperada enquanto o invólucro de luz azul desaparecia no ar.
– Esmague-a! – gritou Thomas para Wesley – Espalhe suas tripas pelo parque e o alquimista verá que não estamos para brincadeiras.
Adam viu um vislumbre de dúvida nos olhos do ranger e aproveitou a deixa para se levantar. Wesley, apesar de acompanhar e apoiar Thomas, não parecia muito disposto a derramar o sangue de pessoas que, talvez, fossem inocentes. Ponderava que Thomas poderia ter se enganado, ou talvez eles tivessem um motivo para fazerem o que fizeram.
Rebecca se debatia presa aos galhos enquanto o necromante ria. Adam reuniu todas as suas forças e se levantou, escorando-se na árvore, para examinar a situação. Sabia que sua vida e a de Rebecca dependeriam do rito que executaria em seguida e que não teria segunda chance. Se não resolvesse a contenda em um único lance Rebecca poderia pagar com a vida. O vento ficou mais forte e uma nuvem cinzenta emergiu da fogueira deixada pelos seus antecessores, irritando seus olhos e prejudicando sua visão.
Adam abaixou-se e desenhou, com um galho, um pentagrama em meio às cinzas. Fechou os olhos ignorando a tontura e recitou lentamente:

LXXIV CANÇÃO DO LIVRO VERMELHO

Abriu os olhos lentamente tentando focar a visão. Suas pupilas dilatadas e vermelhas se fundiam com a íris em brasa. Fixou o olhar no círculo e sussurrou o canto.

Chama robusta, distúrbio termal;
Circo vermelho, escambo formal;
Oferta rogada, esforço medido;
Rito forçado e destino cumprido.

Ave lendária, das cinzas renasce;
Estrela de fogo, ditoso enlace;
Assalto frustrado, anseio tropeço;
Sinistro de chamas. Eu ofereço!

O círculo incendiou. Chamas vermelho vivo seguiam o contorno como se pólvora tivesse sido espalhada sobre ele e levantavam labaredas incandescentes. Quando o círculo de fogo se uniu, as chamas subiram aos céus, formando uma estrela vermelha que explodiu e desceu em formato de uma ave, enorme e ardente, pousando sobre o círculo de cinzas e apontando o bico em chamas na direção de seus opositores. As cinzas desapareceram e o alquimista se levantou, com o grande pássaro vermelho pairando sobre sua cabeça.
Com um movimento de Adam a fênix disparou, circundando os presentes, queimando a grama por onde passava e chamuscando as roupas dos controlados que eram atirados para o lado pela força da investida.  O sorriso morreu no rosto de Thomas quando viu que a ave vinha em sua direção. Tentou correr para o lado, mas já era tarde demais. Por sorte Wesley moveu os galhos das árvores para frente e absolveu a maior parte do choque, mesmo assim o impacto foi grande o suficiente para atirá-los à borda do lago, enquanto os carvalhos ao redor pegavam fogo, libertando Rebecca, que caiu de mau jeito ao lado do Alquimista.
Uma multidão começava a se aglomerar a volta da confusão e Adam não sabia se fugia com Rebecca e deixava tudo como estava ou terminava o serviço, dando o golpe final nos três agressores que o atacaram. Decidiu em primeiro lugar ajudar Rebecca. A cabalista tinha caído de costa e estava com dificuldades para respirar, então Adam colocou-a de pé, se apoiando em seu ombro, e olhou ao redor, procurando pelo trio desconhecido. Thomas já estava de pé, com os olhos totalmente negros, limpando a sujeira da roupa, enquanto Mariah ajudava Wesley a se levantar. O Ranger parecia ter sofrido a maior parte do ataque e estava zonzo, como se tivesse batido a cabeça ao cair. Rebecca se recuperou e insistiu com Adam para saírem dali, mas Thomas não parecia a fim de encerrar a disputa. Sacou uma faca de serra do bolso traseiro da calça e puxou a manga da blusa, descobrindo o pulso e expondo a pele esbranquiçada.
– NÃO! – gritou Mariah quando percebeu o que Thomas pretendia fazer – Isso de novo não! – e se jogou sobre o necromante, caindo com ele dentro do lago e espantando os cisnes que vagavam por ali.
Wesley olhou ao redor sem saber o que fazer, mas por fim decidiu ajudar o primo e a namorada que lutavam para chegar à margem. Adam aproveitou a deixa. Colocou Rebecca nos ombros e correu para o carro, deixando uma multidão perplexa e o bosque em chamas atrás de si, enquanto Thomas gritava, ensopado e furioso, que ainda se encontrariam novamente. 


***

0 comentários:

Postar um comentário

 
;