sexta-feira, 19 de agosto de 2011

CAPÍTULO VII



A PROMESSA


O avião decolou e incidiu sobre o ladino9 o desejo de voltar atrás. Não gostava da ideia de invadir a GD e não tinha certeza de que os riscos que correria valeriam a pena, mas não podia deixar passar essa oportunidade. Estava bem acomodado na poltrona executiva, ao lado de um garoto gordo e espinhento que, volta e meia, lançava-lhe um olhar inquisidor, espiando por cima dos óculos de fundo de garrafa. Tinha tentado ignorá-lo desde o momento em que encontrou e sentou em seu lugar, mas o garoto ficava mais ousado a medida que o tempo passava e parecia incomodado com a presença do ladino ao seu lado. De todas as malditas poltronas disponíveis nesse avião, tinha que cair logo ao lado desse bolo-fofo espinhento, pensou enquanto mudava de posição e virava as costas para o rapaz. A aeromoça passou e ofereceu uma bebida, mas Justin recusou. Queria estar lúcido para revisar o plano e sempre perdia as estribeiras quando bebia, então aceitou apenas uma água com gás e um pacotinho de amendoim.
A aeromoça foi até o final do corredor e voltou, dando um meio sorriso ao passar por ele. Justin devolveu o sorriso e colocou o pescoço para fora da poltrona para ver melhor. Fingiu um pigarro e deu uma piscadela quando a moça olhou para trás. A aeromoça era loira e alta. Tinha olhos azuis vividos e maquiagem carregada, típico das comissárias de bordo. Justin, por sua vez, era negro, alto, olhos negros e o cabelo arranjado em várias tranças, ao estilo rastafári. Seu rosto fino e ossudo aliado aos caninos proeminentes lhe conferia uma aparência lupina, principalmente quando sorria e exibia a dentição perfeita. Estava bem vestido; com blazer preto e calça preta, camisa branca de seda e sapato mocassim. Um brinco de prata reluzia em sua orelha esquerda, com um L de ouro pendurado, simbolizando a classe dos ladinos e um anel de ferro grosseiro com um ônix incrustado indicava que Justin pertencia a antiga família Brow.
Abriu a bolsa que carregava a tiracolo e examinou o estranho artefato embrulhado em papel jornal. Era um objeto negro, que refletia parcialmente a luz, formando um vulto escuro sobre os olhos do rapaz. O garoto nerd que compartilhava a poltrona com ele esticou o pescoço na esperança de ver o que havia atraído a atenção do ladino, mas Justin fechou a bolsa rapidamente lançando um olhar de censura e repulsa para o jovem, que recuou intimidado.
– Perdeu alguma coisa aqui quatro olhos? – perguntou encarando o rapaz – Se não, vire essa cara purulenta para a janela antes que eu a enfie no saquinho de vômito.
O garoto virou o rosto para a janela e permaneceu assim pelo resto da viagem. Justin esperou o avião pousar e desceu, esperando a aeromoça que se despedia dos passageiros. Ela esperou até o último descer e se dirigiu a ele com um sorriso no rosto.
– Fez boa viagem senhor? – perguntou puxando conversa.
– Muito boa senhorita. Como é seu nome por obséquio?
– Lia. – respondeu a jovem lançando lhe um olhar inocente. – E o seu?
– Muito prazer Lia. Meu nome é Justin Brow e estava pensando se seria muita ousadia de minha parte convidá-la para jantar?
A moça sorriu e aceitou o convite. Trocaram telefones e algumas palavras e, no final, Justin combinou de pega-la às 20:00 horas e foi para um hotel indicado pelo taxista que o recebeu na saída do aeroporto.
– Pretende ficar muito tempo na cidade monsieur? – perguntou o taxista tentando puxar conversa. Falava inglês, mas seu sotaque carregado fez Justin percebeu que era novo no ramo.
– Não tenho certeza. Tenho uns assuntos para resolver aqui, mas não imagino quanto tempo demorará. A propósito pode falar francês comigo. Seu sotaque é péssimo e feri meus ouvidos – contrapôs Justin. Uma característica dos magos, independente de sua classe, era a capacidade de falar e entender a maioria das línguas e Justin usava essa qualidade para dar um ar de culto e impressionar as garotas, no entanto, dessa vez, usaria a habilidade para algo necessariamente útil.
– Desculpe senhor – respondeu o taxista em francês – Se quiser posso indicar uns lugares para o senhor visitar. Paris é muito aconchegante no outono e os cafés ficam lotados...
– Como é seu nome taxista? – perguntou, interrompendo a indicação do rapaz.
– François senhor. Como eu ia dizendo...
– Obrigado François, mas dispenso a indicação. Tenho assuntos mais importantes para pensar no momento e não quero desperdiçar meu tempo com cafés – falava com desdém como se a conversa com um taxista não fosse de seu interesse. O Francês percebeu a pouca vontade de seu passageiro e encerrou o assunto até o ladino puxar um maço e acender um cigarro, soltando uma baforada em sua direção.
– Não pode fumar aqui senhor – disse o taxista calmamente.
– Porque não? – retrucou Justin.
– São as regras senhor.
– Que o demônio leve suas regras! – respondeu com pouco-caso e continuou a fumar e jogar baforadas na direção de François. O taxista ainda resmungou algo, mas logo desistiu de reclamar e acelerou bruscamente o carro na esperança de se livrar logo do cliente.
– São oito euros senhor – disse assim que chegaram ao seu destino.
– Fique com o troco – respondeu Justin ao jogar doze dólares sobre o banco do carona e sair do carro com as malas.
O taxista arrancou deixando o ladino na entrada de um grande e luxuoso hotel. Justin anotou o número do serviço de taxi escrito na traseira do veículo e se dirigiu à entrada. O saguão era todo dourado, com pilares sustentando o teto abobadado e no chão, um enorme carpete felpudo forrava o assoalho. Justin entrou e falou com o concierge para requisitar a suíte que tinha reservado e o carregador de bagagens levou suas coisas para o aposento. O rapaz deixou as malas na entrada do cômodo e voltou para a porta a espera de uma gorjeta, mas Justin bateu-lhe a porta na cara e levou seus pertences para o quarto. Desfez as malas e tomou um banho rápido enquanto pensava no compromisso que tinha marcado com a aeromoça. Não contava com esse contratempo, mas não podia deixar passar uma belezura como aquela. Saiu do banho e vestiu-se para o encontro e como ainda não passava das 19:00 horas, serviu-se de um uísque para matar o tempo e relaxar. Sentou-se no sofá e tomou um trago enquanto pensava no último objeto que tinha roubado e ressentiu-se por usar a irmã para alcançar seu objetivo, mas o disfarce que usara era infalível e a irmã provavelmente não teria problemas com a justiça. Largou o copo no canto do sofá e foi até o espelho conferir o visual. Estava usando um blazer preto e camisa branca, com calça e sapato preto. Não gostava de se vestir como um pingüim, mas a ocasião exigia vestimenta a rigor, então deu mais uma arrumada no cabelo, conferiu o dinheiro na carteira e saiu.
A noite estava quente e o concierge perguntou se ele desejava um taxi, mas Justin recusou. Não gostava de depender de outras pessoas e criar laços poderia ser perigoso quando se é um ladrão, sendo assim retirou o celular do bolso e ligou para o número que havia anotado anteriormente, mas desta vez quem atendeu foi uma mulher.
– Boa noite, em que posso ajudá-lo? – disse a voz em francês do outro lado da linha.
– Boa noite. Preciso de um taxi. Estou em frente ao hotel Le Luxe e estou com um pouco de pressa.
– Muito bem senhor. Já estou enviando um taxi para pega-lo. Obrigado pela preferência – e desligou.
Justin acendeu um cigarro e esperou o taxi que chegou rapidamente. O motorista não era o mesmo da corrida anterior e não deu importância ao fato do ladino entrar fumando no interior do veículo. Também não tentou puxar assunto, apenas perguntou o destino fazendo com que Justin se lembrasse que ainda tinha que ligar para a aeromoça para saber onde pega-la.
– Só um minuto – respondeu ao taxista e ligou para Lia.
– Oi – foi a resposta do outro lado da linha.
– Oi Lia, aqui é o Justin, o cara do avião. Já posso passar para pega-la?
– Ah! Olá Justin. Eu estou pronta. Pode me pegar aqui no alojamento da Airpress Company.
– Ok. Estou indo para aí, beijo gata.
– Beijinhos. Tchau.
Justin desligou e indicou ao taxista o local onde deveria pegar sua acompanhante. O rapaz arrancou com o taxi e tomou uma direção contrária a do GPS, o que deixou Justin indignado, mas o taxista avisou que ia pegar uma rota alternativa para fugir do trânsito daquele horário e assim chegar mais depressa ao seu destino, porém no caminho um pneu do taxi furou e gerou um pequeno atraso na corrida, o que deixou o ladino irritado.
Meia hora depois o taxi encostou em frente ao alojamento e a aeromoça entrou. Já estava esperando o rapaz a um bom tempo, mas não demonstrou irritação, ao contrário de Justin, que acusou o taxista de incompetência.
Em poucos minutos chegaram ao restaurante. O local era requintado, com as mesas dispostas de maneira à deixar os clientes de frente para o palco, onde um cantor de blues animava a platéia. Lia achou curioso o formato da mesa, quase como um triângulo, e comentou que devia ter algum significa maçom, mas Justin desconversou e chamou o garçom para pedir o menu.
O jantar correu sem contratempos. A moça era extrovertida e não faltava assunto para os dois conversarem. No final Justin convidou-a para conhecer seu apartamento e tentou disfarçar uma surpresa com a resposta afirmativa da aeromoça. Como todo conquistador, esperava alguma resistência por parte dela e a facilidade com que as coisas ocorreram tirou um pouco a expectativa do rapaz, mas acreditou que a sorte estava ao seu lado e decidiu não questionar. Chamou o garçom, pagou a conta e saíram.
O taxista aguardava do lado de fora e pareceu surpreso com o pouco tempo que o casal gastou para jantar, mas não fez nenhum comentário para evitar uma resposta mal-humorada do ladino. Abriu a porta para os passageiros, entrou no táxi e arrancou.
Em poucos minutos chegaram ao hotel e dispensaram o taxista. Lia fez um comentário sobre a imponência do lugar e quanto custaria a diária num hotel como aquele, mas Justin se limitou a desconversar. Pegaram o elevador e, enquanto subiam para o quarto, a moça aproveitou que estavam sós para se atirar nos braços do rapaz. O ladino aproveitou a deixa e desabotoou a blusa da moça, enfiando a mão sob o sutiã e apertando o seio firme da aeromoça, que se afastou sorrindo e fechando os botões. Entraram no apartamento e Justin serviu uma bebida para Lia que tomou um trago e derramou o restante sobre os seios, tornando a blusa parcialmente transparente. Justin tirou a camisa, mostrando o tórax bem definido e se jogou sobre ela, derrubando-a no sofá, enquanto beijava seu pescoço e abria novamente os botões de sua blusa. Em poucos minutos estavam no quarto e as roupas amontoadas aos pés da cama.
O encontro se arrastou noite adentro e quando Justin deu por si estava amarrado à cabeceira da cama, com os olhos vendados e com Lia a pingar vela derretida em seu peito. Tentou forçar os braços e se soltar, mas as amarras estavam bem presas e sua tentativa só serviu para que a moça aumentasse os castigos. 
– Quieto aí cãozinho. – disse Lia com voz dominadora – Não adianta tentar se soltar. Você não vai sair daqui enquanto mamãe não quiser que você saia. – e torceu o mamilo de Justin fazendo com que ele arrebentasse as amarras e se jogasse, furioso, em cima da aeromoça. Lia o abraçou, virando por cima e o mordendo no ombro enquanto o Justin puxava seus cabelos e a estapeava nas pernas e na bunda.  A brincadeira terminou no banheiro, onde tomaram um banho e conferiram os hematomas. Lia ria da situação enquanto o ladino contava as marcas no corpo e prometia se vingar na próxima vez que se encontrassem. O vapor do banho quente encheu o banheiro e embaçou o vidro do box onde a moça desenhou um coração e escreveu o nome dos dois, cruzando-os com uma flecha. Justin a abraçou e disse que não queria ficar apenas naquela vez, que queria vê-la de novo e Lia o beijou, prometendo que se encontrariam de novo. Ficaram no chuveiro até a pele dos dedos da moça começar a enrugar, então voltaram para o quarto, acenderam um cigarro em cima da cama e fumaram enquanto conversavam sobre as viagens que fariam e os lugares que visitariam quando estivessem de férias. Lia deitou sobre o peito do ladino e o acariciou enquanto Justin alisava seus cabelos loiros, até que vencidos pelo cansaço, adormeceram.
A madrugada seguia silenciosa do lado de fora do apartamento, mas Justin, acostumado com a vida de risco, ouviu, meio dormindo, um barulho de algo se movendo em seu quarto. Abriu os olhos lentamente e viu Lia, nua em pelo, vasculhando suas coisas. A moça abriu as gavetas e remexia nas malas a procura de algo, que o ladino não tinha certeza do que seria. Dinheiro não pode ser, pensou. Sua carteira estava no bolso de trás da calça e ela já havia revirado suas roupas, então só poderia ser sua mais nova aquisição e a aeromoça; uma agente de algum grupo místico interessado nos artefatos. Estava fácil demais, eu devia ter desconfiado, e tossiu levemente, dando um susto em sua companheira. A moça se recompôs e sentou-se na beirada da cama, vestindo a calcinha e a calça rapidamente, indo em seguida para a sala onde terminou de se vestir. Amarrou os cabelos e deu uma última olhada para o ladino espichado sobre a cama e saiu, batendo a porta atrás de si. Justin levantou, trancou a porta e se dirigiu ao banheiro, tirando um embrulho de dentro da caixinha de descarga e lavando-o na pia. Uma forte batida na porta atraiu a atenção do ladino que correu para guardar o embrulho em sua bolsa de viagens e esconde-la embaixo da cama, depois vestiu as roupas e foi até a porta ver o motivo da interrupção.
– Desculpe Senhor – disse o carregador de bagagens – mas a moça que o acompanhava saiu correndo pela área de serviços e roubou o carro de um dos cozinheiros, o gerente mandou acordá-lo para perguntar se o Senhor poderia nos dar uma explicação sobre isso.
– Meu Deus, como pode ser isso! – respondeu o ladino fazendo cara de espanto – Estou tão surpreso quanto vocês, mas se quiser posso conversar com seu chefe e prestar depoimento. Imagino que já chamaram a polícia não?
–Imagino que sim Senhor. Então pode me acompanhar, por favor?
– Com certeza. Só um minuto que vou calçar os sapatos.
O carregador assentiu com a cabeça e Justin voltou para o quarto e abriu sua bolsa, tirando o embrulho e o escondendo dentro das calças, em seguida foi até a sala e calção os sapatos e, antes de sair, pegou uma máquina fotográfica antiga de cima da estante, pendurou-a no pescoço e saiu.
O moço ia na frente mantendo um silencio constrangedor e Justin seguia logo atrás mexendo em sua máquina fotográfica. O rapaz notou o comportamento do ladino, mas imaginou que a câmera continha alguma foto da moça e que ele a estava levando para ajudar na identificação e possível captura da ladra, porém Justin cutucou-lhe o ombro e assim que ele se virou, tirou uma foto, provocando uma cegueira momentânea e fazendo com o rapaz perdesse o equilíbrio e caísse.  Tentou se levantar escorando na parede e abriu os olhos lentamente, bem a tempo de ver uma cópia idêntica de si, armando um soco e acertando-o acima da fronte, fazendo com que tombasse novamente, totalmente desacordado.
Justin voltou ao quarto arrastando o corpo inerte do carregador e jogou-o no banheiro, ao lado do vaso sanitário. Enquanto trancava a porta, tentava não pensar que seu plano quase fora por água abaixo por causa de uma distraçãozinha, mas a consciência martelava lhe a cabeça alertando que ainda não saíra do hotel e as coisas ainda poderiam dar errado. Voltou ao quarto, arrumou suas malas e ligou para o taxi pega-lo em frente o hotel. O disfarce deveria servir para sair do estabelecimento sem contratempos, mas temia que a polícia já estivesse no local, o que poderia piorar as coisas. Não que a cadeia o preocupasse. Já fora preso antes e fugira sem dificuldades, mas o tempo que perderia e os objetos que carregava poderiam complicar a situação.
Fechou a porta e saiu. O corredor ainda estava deserto então não teve dificuldades em chegar ao saguão e já ia saindo com as malas quando ouviu o concierge chamá-lo.
– Onde vai Pierre? Não lhe mandei buscar o Senhor do 205?
Justin que não esperava por aquilo e tentou improvisar.
– Ele já está a caminho Senhor. Apenas me pediu um tempo para se vestir e colocar as ideias em ordem. Enquanto isso me dispus a carregar as malas do casal do 204 que partem dentro de meia hora.
– Tudo bem então, mas assim que terminar com isso volte ao quarto e o conduza até o escritório.  A polícia logo chegará e vai querer ouvi-lo.
– Sim senhor. – respondeu Justin, e saiu para o estacionamento.
O táxi já o esperava quanto chegou a rua. Deu uma olhada ao redor para conferir se ninguém o vira voltar ao normal e entrou no automóvel. O taxista, que era o mesmo da primeira vez, perguntou o destino com seu sotaque carregado e o ladino respondeu apenas para ele seguir em frente até sair da cidade e adentrar a área rural.
O dia já estava amanhecendo quando o taxista o deixou na estrada de chão que dava acesso ao campo. Justin abriu uma das malas na grama que margeava a estrada e retirou uma mochila de pano, tipo militar, na qual guardou alguns pertences: roupas, e calçados leves e sua câmera fotográfica antiga, depois retirou o embrulho que carregava nas calças e o guardou num dos bolsos laterais da mochila. Abriu a outra mala e retirou uma barraca desmontável, uma garrafa de água, faca, lanterna e alguns apetrechos culinários. Prendeu a barraca numa fivela que tinha na base da mochila e guardou o restante, estufando a bolsa ao limite. Trocou de roupa e jogou as malas com as roupas caras na grama alta ao lado da passagem e seguiu viagem a pé. A estrada era larga e bem delineada e um vento fresco que soprava do leste facilitava a caminhada, balançando as tranças do ladino e levantando folhas que repousavam sob as árvores. Aos poucos o sol foi esquentando e Justin procurou um riacho para tomar banho e preparar uma refeição, mesmo sabendo que seria difícil avistar alguma coisa daquele ponto do caminho. Pensando assim, deixou a estrada e se embrenhou na mata fechada até encontrar um lago de águas profundas e frias. Já passava das quinze horas e decidiu montar acampamento e comer alguma coisa. Juntou algumas pedras e acendeu um fogo, deixando a água esquentando, enquanto montava a barraca e tomava banho. Quando voltou a água já fervia no caldeirão e os galhos, que usou como suporte, estavam quase consumidos pelas chamas. Trocou o suporte e preparou uma sopa com legumes e macarrão instantâneo e usou o resto das brasas para assar um milho. Comeu a sopa e guardou o milho para o jantar, já que não pretendia acender fogueira a noite para não chamar atenção.
O restante do dia correu tranquilamente. Justin revisou seu plano e conferiu os artefatos. Estava preparado para o grande dia e mal podia esperar para rever a GD. Ouvia-se todo tipo de historias sobre ela; de como a magia era ensinada a todos os aptos, sem distinção de cor, raça, credo ou classe. Todos eram bem vindos naquele lugar. Seus alunos sempre se destacavam no mundo dos homens e seus feitos deixavam os anciãos dos círculos mágicos morrendo de inveja. Podia se encontrar todo tipo de pessoa ali: alquimistas, necromantes, bardos, rangers, cabalistas, paladinos e ladinos. Justin já conhecera um Mestre da GD e ainda carregava consigo uma das grandes invenções do sujeito.
A noite chegou rapidamente e com ela, nuvens de mosquitos advieram sobre o ladino tirando-lhe o sono e nada do que fazia parecia afastá-los, então saiu para o luar e deu um mergulho para abrandar a coceira no local das ferroadas. A noite estava linda, com um céu claro e lua cheia que refletia nas águas plácidas do lago e emanava uma paz tranquilizadora, apenas o piado de uma coruja e o cricri dos grilos quebravam a calma do lugar. Nadou durante algum tempo e voltou para a barraca, comeu o milho assado que havia guardado e deitou. Os mosquitos ainda estavam por ali, zunindo e picando, mas apesar da perturbação e do incômodo conseguiu dormir um pouco.
No outro dia, acordou cedo, desmontou o acampamento e voltou para a estrada. O sol começava a esquentar quando finalmente avistou a GD. O prédio era enorme e lembrava um castelo medieval, mas com uma arquitetura moderna. As paredes eram de pedra escura, mas não tinha torres como os castelos antigos, apenas colunas, grossas como troncos de carvalho e uma marquise que delimitava o segundo andar. O nome “GD” estava destacado em grandes letras de metal polido e ao redor das letras, uma rosa vermelha marcava o centro de uma cruz de aço levemente inclinada.
Em volta do prédio principal se erguiam vários menores, com aparência de alojamentos e grandes obeliscos demarcavam a área de cada um. Mais ao fundo da propriedade, um prédio menor se destacava e, ao redor dele, áreas alagadas cortavam os campos e formavam uma espécie de pântano, onde se cultivava arroz e ceva de peixes. Na frente, do lado esquerdo das construções, via-se campos e pastagens onde bois e carneiros pastavam despreocupados e do lado direito, continuava a reserva florestal banhada pelo lago que vinha até bem próxima das construções.
A fazenda era enorme e da estrada Justin teve apenas um vislumbre de toda sua magnitude. Pessoas se movimentavam ao redor do prédio principal e o vai e vem constante lembrava a agitação dos grandes centros urbanos.
Justin sentou-se na beira da estrada e acendeu um cigarro para se preparar para a invasão. Precisava se disfarçar de aluno, mas chegar próximo o suficiente para bater uma foto seria muito arriscado com toda aquela agitação ao redor do local e se fosse pego seu plano iria por água abaixo. Pensava com seus botões quando ouviu o som de algo se aproximando estrada acima. Era uma carroça de madeira puxada por bois e seu dono parecia se dirigir a GD com provisões e ferramentas, pois tomou Justin por um aluno desgarrado.
 – Bom dia – disse o carroceiro – O senhorzinho está aguardando para me ajudar com os mantimentos ou só deu uma fugida para matar aula?
O homem parecia acostumado a encontrar alunos matando aulas nas estradas e seu tom de censura irritou um pouco o ladino.
  – Quem dera estivesse matando aula. – respondeu com irritação na voz – Aqueles velhos desgraçados me mandaram aqui, nesse sol escaldante, para servir de burro de carga e carregar as mercadorias para o depósito. Isso sempre acontece comigo, deve ser por que eu sou negro.
  – Deixe de bobagens rapaz – respondeu o carroceiro censurando-o – Se tem uma coisa que não existe aqui é preconceito. Já faz mais de 10 anos que faço entregas pra eles e nunca vi nenhum menino ou menina sendo destratado por causa da cor.
Justin ainda resmungou alguma coisa para disfarçar, mas aproveitou a oportunidade para entrar na GD sem ser notado. O velho carroceiro encostou a carroça nos fundos, perto do depósito, e gritou para outro menino, que conversava com um grupinho de meninas, para ajudá-los a descarregar. O rapaz era louro e aparentava uns 14 anos, mas a barba rala que cobria o rosto e o timbre de voz mais grave indicavam que era um pouco mais velho. Fez uma cara de pouco amigos quando foi selecionada para descarregar as mercadorias, mas não reclamou. O depósito era enorme, com várias caixas empilhadas ao redor de pilares que sustentavam o teto e fardos de café amontoados nos cantos, ao lado de sacos de feijão graúdo, arroz e outros cereais. Ao lado da porta ficavam uns carrinhos de ferro com rodinhas, usados para transportar as caixas e sacos e, mais ao fundo, um painel forrado de ferramentas cobria toda a parede.
O velho se dirigiu até o prédio maior, para conversar com os Mestres e deixou os dois meninos trabalhando. Justin aproveitou a deixa e assim que ficou sozinho com o garoto dentro do depósito, tirou sua câmera e bateu uma foto do menino. Automaticamente a luz voltou para a câmera e se projetou sobre o ladino que assumiu a forma e as roupas do aprendiz, que assistia a tudo atônito. O garoto só fez menção de gritar quando Justin se lançou sobre ele e o amordaçou com uma tira de pano e pedaços de cordas, arrastando-o e o amarrando a um pilar atrás das caixas mais antigas que forravam o fundo do depósito.
O carroceiro voltou poucos minutos depois e perguntou por Justin, que teve que inventar uma desculpa dizendo que o outro menino tinha aproveitado a ausência dele para fugir do serviço. O velho pareceu acreditar na conversa e assim que todas as caixas e ferramentas foram descarregadas e guardadas, seguiu seu caminho estrada afora.
Justin se dirigiu até o grupo de meninas que ainda conversavam perto do depósito. Precisava descobrir mais coisas sobre o garoto do qual roubara a aparência e se fingir de bobo sempre funcionava, pensando assim chegou até as meninas e suspirou, fazendo cara de cansado.
  – O que foi Michael, por que essa cara de desânimo? – perguntou uma garota indiana. Seu rosto era fino e gentil e seu cabelo, arranjado em tranças, descia até a cintura. Usava roupas típicas da Índia, amarela e vermelha, que contrastava com sua pele morena e bem cuidada.
As outras meninas riram enquanto o ladino pensava numa explicação. Por sorte apareceu um homem de meia idade que fez com que todas se calassem. Vestia uma toga, azul e amarela, com uma listra dourada cortando o traje de cima a baixo. Seu rosto sereno emanava tranquilidade e poder, e seus olhos eram a coisa mais perturbadora que Justin tinha visto. Era como se olhasse através do corpo e enxergasse a alma do indivíduo, seus pensamentos, medo e desejos. Ele fixou o olhar no ladino e, por um momento, Justin acreditou que seu disfarce viria a baixo, mas o homem sorriu e abaixou a cabeça cumprimentando a todos.
– Mestre Matheus. – disse a garota indiana com reverência, e todas se curvaram em sua presença. Justin imitou a reação das meninas e se curvou, olhando de rabo de olho para o sábio10 que se apresentava diante deles. Mesmo com a reação amistosa o ladino estava perturbado, tinha a impressão que aquele olhar revelara os desejos mais íntimos de sua alma e que nada lhe ficaria oculto se ele quisesse. Tentou se recompor esfregando as mãos suadas na calça antes de erguer a cabeça e voltar a encarar o Mestre.
– É bom vê-lo novamente Michael.  – disse Matheus coçando a barba bem aparada – Mestre Jeú não gostou das cores que você escolheu para suas cortinas, você sabe como ele é. Então gostaria que você mudasse para cores mais claras, um azul claro ou amarelo. O que acha?
– Ok Mestre – respondeu Justin com um sorriso tímido. Os olhos azuis de Matheus se fixaram em Justin de tal maneira que o deixaram tonto – Vou trocá-las assim que me restabelecer. Fiz muito esforço descarregando as mercadorias e não estou passando muito bem.
– Não tenha pressa. Aproveite para tomar um banho e descansar um pouco. – e virou-se para a garota indiana que estava ao seu lado – Nádia pode ajudar Michael a tomar banho? Não queremos que ele desmaie no banheiro.
– Tudo bem Mestre. Eu já ia tomar banho agora mesmo. – e pegou na mão do ladino – Vamos Michael.
A garota saiu arrastando Justin em direção as banheiros que ficavam ao lado dos dormitórios. Eram vários e se dispunham lado a lado com os quartos, com uma porta para fora e outra para dentro, podendo ser usados tanto por quem estava no pátio, como por quem estava no quarto.
Nádia entrou e começou a tirar a roupa enquanto ria e perguntava o motivo do assombro do ladino com relação a sua nudez.
– O que foi Michael? Até parece que você nunca me viu sem roupa. – Justin não respondeu de imediato, apesar de saber que a nudez era considerada normal na GD. O fato de estar nu ao chuveiro com uma garota o fez lembrar-se de Lia e seu corpo bronzeado e em que fim teria tomado a aeromoça e, por alguns instantes, pensou em voltar e investigar o paradeiro da moça e o motivo que a levara a tentar roubá-lo. O pensamento fugiu de sua mente quando a garota indiana sentou no vaso sanitário para urinar e pediu ao ladino para virar de costas.
 – Não consigo se tiver alguém olhando. – justificou-se enquanto o ladino virava de costas e começava a se esfregar embaixo do chuveiro
– Pode virar agora, já acabei – disse depois de alguns instantes e entrou no chuveiro com o rapaz.
Justin sabia que todos os aprendizes tomavam banho juntos e dividiam os dormitórios, sendo que não havia divisões quanto ao sexo. No entanto, relações sexuais eram proibidas sob pena de expulsão e apesar de muitas vezes os Mestres e Companheiros fazerem vista grossa sobre o assunto, preferiu não se arriscar e manteve uma distância segura da garota durante todo o banho.
– Você não respondeu minha pergunta. – disse Nádia provocando-o enquanto enxaguava os cabelos.
– Não é nada – respondeu por fim, enquanto contemplava o corpo nu e depilado da garota – É que o Mestre Matheus parece revirar minha mente toda vez que olha para mim. Isso é perturbador. – resmungou.
 Nádia riu.
– Ele é assim mesmo, você já deveria estar acostumado. Só não entendi a brincadeira que ele fez com você a respeito das cortinas. Ficamos todos boiando.
– Não entendi. Que brincadeira?
– Ora! Sobre as cores das cortinas. Como você sabe Mestre Jeú não enxerga a pelo menos doze anos e apesar de toda a sua sensibilidade ele nunca reclamaria da cor das cortinas. O que Matheus quis dizer com aquilo?
Justin assustou-se.
– Espera aí! Mestre Jeú é cego? – Uma sensação de insegurança percorreu o corpo do ladino. Sabia que a “brincadeira” de Matheus não era apenas uma brincadeira. Ele fora descoberto e precisava agir rápido para completar sua missão. Há essa hora já deveriam estar esperando para prendê-lo do lado de fora.
– Credo Michael! – protestou Nádia – Você está estranho mesmo heim. É claro que Mestre Jeú é cego. Você mesmo me disse isso quando entrei aqui. – e pegou uma toalha para se enxugar.
– Preciso ir. – respondeu Justin apavorado – Depois a gente conversa mais. Lembrei de algo que não posso adiar. Tchau. – E vestiu as roupas com o corpo ainda molhado saindo em seguida.
Ao contrário do que imaginava, não havia ninguém para prendê-lo do lado de fora do banheiro. Tudo transcorria normalmente e por um momento suspeitou que houvesse se enganado a respeito de Matheus. Aproveitando a situação, se dirigiu para o prédio central da GD, onde ficavam as salas de aulas e os dormitórios dos Mestres e Companheiros, assim como os refeitórios e ala histórica com museu e teatro. Ninguém pareceu estranhar quando ele perguntou onde poderia encontrar o Mestre Jeú. Sabia que Jeú era o Mestre supremo da GD e se pudesse se disfarçar dele, todas as portas se abririam.
Foi encontrar Jeú em sua sala de diretor tomando uma taça de uma bebida amarela que lembrava vinho de pêssego. O lugar era enorme e se assemelhava a uma sala de reuniões. Tinha uma grande mesa de mármore a frente e varias cadeiras luxuosas dispostas ao redor. Na cabeceira ficava a maior delas e, balançando nela, estava um velho quase careca, com o rosto enrugado e membros flácidos. Seus olhos pareciam perdidos e ele pressentiu a presença do ladino, virando o rosto lentamente para sua direção.
– Quem está aí? Não estou reconhecendo muito bem cheiro. É você Nádia? Seu sabonete indiano parece estar vencido querida.
Justin não respondeu. Tirou a câmera do bolso da calça e disparou o flash, fazendo com que o velho tombasse da cadeira e derrubasse a bebida no carpete.
– Acho que me enganei. – lamentou o velho – Pelo clique parece uma de minhas câmeras copiadoras, mas que me lembre elas não copiavam o cheiro. Como conseguiu imitar o cheiro da Nádia ladino?
– Isso não interessa para você velho. Agora fique quietinho aí até que eu faço o que vim fazer aqui e saia em segurança. – respondeu Justin.
O velho tossiu por alguns instantes enquanto o ladino amarrava seus braços e o arrastava para o banheiro do aposento.
– Não poderá sair em segurança meu filho. Sinto muito, mas você já foi descoberto.
– Cale a boca velho, ou teria que amordaçá-lo. Não tenho muito tempo e não hesitarei em nocauteá-lo se for necessário.
– Não será necessário. Não será necessário – respondeu o velho deitando-se no chão gelado do banheiro e tossindo um pouco.
Justin saiu apressado da sala do diretor e conferiu o mapa. Ele não mostrava a cabine do diretor, nem os aposentos dos Mestres, mas mostrava o museu e o anfiteatro, onde o ladino começou a procurar o objeto que viera roubar. Após alguns instantes de busca infrutífera, Justin voltou para a sala do diretor e pressionou Jeú sobre a localização do artefato.
– Onde está o brinco velho? Juro que o esmurrarei se não me contar. – tentou se mostrar ameaçador para convencer o velho Mestre a lhe dar a informação que desejava, e assim, adquirir o que viera buscar.
– A violência não será necessária meu filho. – respondeu o velho suspirando – O objeto que procura está no armário da sala, dentro de um pequeno cofre dourado. Era muito perigoso deixá-lo no museu ou em qualquer outro lugar, mas não recomendo que o roube. O brinco devasso pode ser muito perigoso para aqueles que pretendem usá-lo para objetivos egoístas.
– O que vou fazer com ele não é de sua conta velho. – e correu de volta para a sala, voltando em seguida com um cofre dourado. Podia tentar arrombá-lo ou descobrir a combinação, mas estava sem tempo e cabeça para pensar então entregou-o ao velho ordenando:
– Abra!
O velho se remexeu no piso e virou o rosto para o ladino.
– Não posso abri-lo criança, você me prendeu os braços.
– Então me diga a combinação.
– Não é tão simples assim. Está lacrado com magia. – respondeu Jeú e tossiu mais algumas vezes.
O ladino puxou os braços do velho e cortou as amarras com uma faca que carregava a tiracolo. O velho pegou o cofre e desenhou um pentagrama com o indicador, provocando uma fina luz amarronzada que seguia seu dedo e circundava o desenho. O círculo se expandiu e a luz do pentagrama se espalhou sobre o cofre ao mesmo tempo em que o velho o levou aos lábios e recitou uma oração. Justin não ouviu as palavras proferidas, mas ouviu um clique, indicando que a porta do cofre se abrira e revelara seu conteúdo. Rapidamente tomou o objeto das mãos do idoso e observou seu interior. La no fundo um brilho dourado iluminou a sala e Justin sorriu de emoção ao retirar um brinco de ouro e guardá-lo no bolso.
– Não vai adiantar. – resmungou o velho – Não conseguirá sair com ele daqui.
– Veremos. – respondeu o ladino e saiu, fechando a porta do banheiro atrás de si.
Agora que já conseguirá o artefato, só lhe restava deixar a GD sem ser visto e tudo sairia como planejado. Decidiu voltar ao deposito e assumir a aparência de Michael novamente, pois seria muito mais fácil para um aprendiz deixar a GD sem dar explicações, do que para o Mestre supremo do lugar. Pensando assim tomou o corredor que daria para a saída quando viu Mestre Matheus trancar-lhe a passagem. Seu rosto não demonstrava sinais de ter descoberto a farsa e pensou que tinha superestimado as habilidades do Sábio.
– Onde pretende ir a essa hora Mestre Jeú. Não tínhamos combinado uma reunião para agora.
– Sim – respondeu o ladino – Mas antes preciso ir ao depósito para averiguar se todas as mercadorias foram empilhadas corretamente. Sabe como são os aprendizes, nunca fazem o serviço direito.
– É verdade Mestre. Eu sei como são os aprendizes, mas sei também que o senhor arrasta uma das pernas há pelo menos doze anos, desde que perdeu a visão e os movimentos da perna esquerda com a explosão do seu laboratório. Sei também que o senhor não verifica o depósito desde os tempos de Companheiro e sei até o que se passa em sua mente agora ladino. Sei que está pensando em um modo de escapar e fugir como o artefato que roubou, mas devo dissuadi-lo a fazer isso. Não há fuga da GD. Se conhecesse realmente o lugar saberia disso.
Justin não esperava ser desmascarado a caminho da saída, mas não era do tipo que desistia de alcançar suas metas. Encarou Matheus e sorriu seu sorriso de lobo, apagando a foto de Jeú e assumindo sua verdadeira aparência.
– É o que veremos Mestre! – sabia que a saída não estava longe e se conseguisse se misturar a multidão poderia se disfarçar novamente e alcançar o campo sem levantar suspeitas. Uma vez fora da GD nunca mais o pegariam, porém seu plano só poderia ser posto em prática se passasse pelo Sábio e ele não parecia disposto a colaborar.
 Virou-se para a outra ponta do corredor e fez menção de correr, mas outros Mestres e Companheiros chegaram, trancando as vias de saída e reduzindo suas chances de fuga.
– Desista ladino. Não há saída. – disse um Mestre gorducho às costas de Justin. Alguns alunos também se aproximavam para ver o que estava acontecendo e se surpreenderam ao ver que alguém havia tentado roubar a GD.
– É. Parece que vocês me pegaram mesmo – respondeu o ladino abaixando a guarda – Será que temos alguma chance de resolvermos isso amigavelmente?
Os Mestres relaxaram frente à demonstração de derrota de Justin e se aproximaram para prendê-lo, mas era exatamente o que o ladino estava esperando. Ele abaixou as mãos, cruzando-as e formando um circulo estrelado. Fechou os olhos rapidamente e recitou.

XXVI CANÇÃO DO LIVRO MARROM

Abriu os olhos e ergueu as mãos. Uma pequena rachadura se formou no lugar onde havia se apoiado e começou a emanar uma luz turva. O ladino sorriu desdenhoso e executou o canto.

Da pedra o sustento, da terra o recurso;
Caso perdido, mudança de curso;
Um circo marrom, mudando o desfecho;
Fuga segura. Eu reconheço.

A pequena rachadura subiu pela parede e começou a se alargar. O círculo marrom se expandiu e começou a se elevar até a altura da rachadura. Um crash foi ouvido e pedaços de rocha sólida voaram pelo corredor e foram engolidas pelo círculo. Ao final, a luz e as rochas haviam desaparecido e o ladino fugido pela fenda na parede.
– NÃO! – gritou o gorducho e correu para a abertura na parede na esperança de alcançar o ladrão, mas Justin já havia desaparecido, correndo campo afora.
O vento soprava fortemente esvoaçando as roupas nos varais e balançando as árvores do campo enquanto nuvens carregadas se formavam no horizonte e escureciam a floresta, tornando-a escura e tenebrosa, mesmo assim um sorriso se instalou no rosto do ladino quando a avistou. Sabia que, assim que chegasse nela, as chances de ser capturado diminuiriam drasticamente e poderia testar seu artefato em segurança. Não conhecia muito bem o brinco devasso, mas sabia que se pudesse usá-lo a sós, sua escapada e segurança estariam garantidas.
Tomado pela euforia da fuga, acelerou o passo em direção a mata cerrada que se aproximava, mais e mais. Ao longe ainda podia ouvir vozes que gritavam atrás de si e sabia que estava sendo perseguido, mas a GD não tinha histórico de violência e duvidou que algum deles usasse uma arma de longo alcance para detê-lo. Foi quando sentiu a fisgada. Foi como se seu cérebro fosse sugado da cabeça pelos poros. Uma voz branda dentro de sua cabeça o dizia para parar, que não adiantaria prosseguir. A dor aumentou e Justin colocou, inutilmente, ambas as mãos sobre as orelhas para tentar diminuir a pressão. Seus pensamentos começaram a se anuviar e flashs de lembranças povoaram sua mente atordoada. Deve recuperar nossa honra meu filho. Prometa que recuperará, não importa os meios que use para fazê-lo. Prometa. A imagem de seu pai em seu leito de morte o perturbou ainda mais, fazendo com que o ladino perdesse a concentração e diminuísse o ritmo. Prometa meu filho, só assim poderei morrer em paz. A visão desapareceu com uma nova pontada ainda mais forte e a voz voltou a insistir que Justin deveria desistir da fuga.
Com um último esforço, lançou-se desesperado em direção à floresta. Seus olhos já não enxergavam o que passava ao seu redor e apenas sua determinação em cumprir a promessa que fizera ao pai o manteve correndo. Eu prometo pai. Prometo. Repetia para si mesmo quando o mundo começou a girar, antecedendo a dor que voltaria ainda mais aguda. Balançou a cabeça numa tentativa de afastar o sofrimento, mas acabou por tropeçar em uma raiz sobressaltada e cair sobre um pedregulho afiado, rasgando a calça e ferindo profundamente a perna direita. Sangue escorreu pela ferida e encharcou sua calça, grudando-a na perna suada, mas mesmo a dor do corte não se comparava as pontadas que sentia no cérebro.
Apertou a ferida com a mão e seu rosto se crispou de dor, tentou se levantar, apoiando-se na perna boa, mas outro ataque o atingiu fazendo com que suas derradeiras forças o abandonassem e ele caísse novamente praguejando contra a sorte.
A chuva começou a cair ensopando seu corpo, que jazia inerte, ensanguentado e estendido sobre a grama alta e a última coisa que ouviu, antes de ser envolvido pela escuridão, foi a voz solene de Matheus sussurrando em seu cérebro.
Bem vindo a GD!

                                                                                                                          

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