quinta-feira, 25 de agosto de 2011

CAPÍTULO I


A HERANÇA

Dias atuais...


Já passava das duas quando Adam resolveu ir dormir. A noite não havia começado bem e, após doze tentativas fracassadas de completar o ritual, resolveu desistir. Doze era um número importante para os aptos. Doze privilégios, doze classes, doze círculos e doze elementos. O doze estava em tudo no mundo mágico, só não estava no último rito que tentara, e se não conseguira até agora isso só poderia ser um sinal: transmudar vidas ia contra as leis da natureza e o preço a ser pago era alto demais.
Do lado de fora de sua janela à chuva continuava a cair e o brilho dos relâmpagos iluminava suas últimas oferendas – sangue, suor e lágrimas – e o Livro Vermelho, aberto na última página e marcado com uma fita vermelha. O título estampava o motivo de seu fracasso: XCIX Canção do Livro Vermelho, o último ritual que todo alquimista jamais conseguira realizar. O ritual do Elixir da Vida Eterna.

Na manhã seguinte, o dia começou quente, como geralmente acontece depois de uma noite de tempestade, e o sol matutino incidiu sobre a janela de Adam e o despertou. Havia esquecido de fechar as cortinas na noite anterior e agora o astro-rei invadia seu quarto com seu terno brilho acalorado e o forçava a abrir os olhos. Levantou-se sonolento e pegou as roupas que estavam amontoadas sobre o criado-mudo, enquanto no andar de baixo, sua mãe mexia nas louças preparando o café. Era 25 de setembro de 2010, o dia que completaria dezenove anos.
O som dos pratos e talheres na cozinha atraiu sua atenção e o cheiro de algo gostoso assando, fez com que descesse as escadas, onde sua mãe o aguardava com um sorriso e braços abertos. Devolveu o sorriso e abaixou-se para receber um beijo e um abraço.
– Já nem consigo mais beijar meu filho. Você não vai parar de crescer não Sr. Ocher? – apesar da brincadeira sua voz demonstrava orgulho da altura do filho.
– Já parei mãe. A senhora que não percebeu – e devolveu o sorriso, se desvencilhando do abraço da mãe e seguindo em direção ao banheiro.
A mãe deu um tapinha em suas costas e voltou para a cozinha para terminar o café. Do lado de fora, o vento fresco da primavera balançava os galhos da mangueira que crescia perto de sua janela e o roçar das folhas na parede produzia um som característico. Seu quintal era grande e bem arborizado e fazia fundo com a reserva florestal do município, então não era raro encontrar animais passeando pelo terreno ou revirando as latas de lixo dos vizinhos.
Tomou um banho rápido e voltou para a cozinha, onde sua mãe o saudou com uma xícara de café e uma fatia de bolo. – Parabéns filhote! Mais à tarde vou ao centro comprar seu presente por isso não demore muito na sua avó tá!
– Não vou demorar. – respondeu o rapaz pegando o café – Tenho uma reunião na facul depois do almoço e não quero me atrasar.
Na verdade não tinha intenção de chegar à faculdade, mas sim voltar à praça em frente ao campus onde vira de relance, uma moça no dia anterior. Uma aura azul celeste a envolvia e por um minuto suspeitou se tratar da visão de um anjo, mas ela se virou, entrou no Corolla estacionado em frente à praça e desapareceu.
Comeu o bolo rapidamente, se despediu da mãe e saiu. O vento soprava mais forte agora e balançava os galhos das árvores ao redor espalhando folhas e flores pela estrada afora e inundando a atmosfera com cheiro de terra molhada. Sua rua era bem arborizada e o vento sob as árvores proporcionava uma atmosfera agradável. Dobrou a esquina e seguiu pela avenida que dava para a zona rural. A rua era larga e possuía duas vias de acesso, divididas por um canteiro com árvores frondosas e grama alta onde pássaros e grilos faziam uma verdadeira algazarra; cortejando suas pretendentes ou tentando conseguir sua primeira refeição do dia. Fingiu não escutá-los enquanto tentava imaginar o motivo que levou sua avó a lhe mandar um bilhete depois de tanto tempo. É certo que ela e sua mãe não se entendiam e depois da morte de seu filho a velhota se afastou do resto da família, permanecendo isolada numa casinha perto da estrada, onde morou com seu avô até o mesmo desaparecer a dezoito anos atrás. A mãe incentivava essa separação e sempre chamava a avó de bruxa velha.
Lembrar-se do pai fez aflorar em Adam emoções que acreditava estarem sepultadas. Ele parou por um instante e pegou o bilhete:

Oi filho, como você sabe seu avô está desaparecido há dezoito anos e seu pai nunca quis aceitar o legado da família. Agora que você tem idade suficiente passo a você a herança dele. Sei que você é especial e fará bom uso dela. Espero-te amanhã de manhã em minha casa. Não falte.
Um beijo.
Vovó.

– Legado da família – pensou em voz alta – minha vó deve estar caducando – sabia que a avó vivia apenas com a aposentadoria e o único bem que possuía era a propriedade no fim da estrada, mas a referência à seu pai e o fato dele ser especial indicavam que a avó remexeria nas velhas feridas da família.
Caminhava perdido em devaneios quando ouviu um gemido vindo de trás de uma árvore que adornava o canteiro central. Subiu na grama e contornou a árvore para ver, bem ao lado do tronco, um filhote de pardal que tentava abrir a asa e imediatamente a recolhia se contraindo de dor. Aparentemente caíra dos galhos e a quebrara.
– Olá. Tudo bem aí? – falou no piado característico dos pardais – Parece que está com problemas – o pássaro tentou afastar-se, mas mal conseguia se movimentar e se encolheu, encostando-se ao tronco – Não se preocupe, só quero ajudar.
Correu as mãos pelo grama alta e encontrou um ramo seco, com o qual desenhou no ar um pentagrama de luz. Um pequeno feixe vermelho seguiu o graveto como se brasa viva riscasse o ar e formou um desenho. Adam pegou o pássaro com cuidado, depositando-o sob o desenho e puxou uma pena de sua asa, fazendo com que o filhote se encolhesse ainda mais e piasse um palavrão em protesto. Pegou novamente o graveto, desenhou outro pentagrama e abaixo dele colocou a pena, se posicionando com as mãos atravessando os círculos sobre a pena e a asa quebrada. A mão direita sobre a asa e a esquerda sobre a pena.
Fechou os olhos, concentrou-se e recitou lentamente.

XIV CANÇÃO DO LIVRO VERMELHO

Abriu os olhos lentamente tentando focar a visão. Suas pupilas estavam dilatadas e as íris vermelhas como brasa. Fixou o olhar no pássaro e sussurrou o canto.

Ossos e sangue, pena vivaz;
Círculo de luz, uma troca se faz.
Perto do fim, um novo começo;
Cura sem dor. Eu ofereço!

Os círculos brilharam mais intensamente e a pena desapareceu no ar. O círculo da esquerda uniu-se ao da direita envolvendo o pássaro que brilhou com uma aura vermelho fogo, enquanto a luz percorreu seu corpo e se concentrou na asa quebrada, fazendo-a estalar. No mesmo instante a fratura desapareceu e a ave alçou voo, enquanto os últimos resquícios de brilho desapareciam.
– Puxa, nem agradeceu! – levantou a cabeça e tentou olhar na direção que o pássaro voara, mas o sol ofuscava sua visão. Do alto da árvore veio um – Muito obrigado! – e o pássaro voou novamente.
Adam sempre tivera certo dom para executar os cânticos, e para magias de nível I não sentia necessidade de desenhar os círculos no chão, bastava traçar o desenho no ar usando os dedos ou algo similar como um bastão ou graveto. Sempre tivera certo receio de executar magias de cura, visto que não era sua especialidade, mas usar a pena como oferenda lhe pareceu suficiente para uma pequena fratura e a pouca energia consumida apenas o deixara ofegante por alguns instantes.
Uma das regras da magia antiga é que a oferenda sempre é menor que o benefício. Para ossos uma pena, para ouro, chumbo, e para a vida eterna uma vida humana, mas poucos tinham coragem para entoar o cântico proibido, pois o espírito humano é a única substancia que não pode ser contrabalanceada e ao consumir um perde-se também o seu, então nunca passara por sua cabeça usar um ser humano vivo em um ritual de troca, mas já ouvira histórias de alquimistas negros, sem espíritos e perambulos entre a vida e morte.
Desceu do canteiro e seguiu pela longa avenida. As casas raleavam conforme prosseguia e ao longe avistou a porteira que dava para a casa da avó. O mato estava muito maior agora e a velha mangueira era apenas um amontoado de madeira em decomposição.
No final do caminho um velho rancho surgiu no horizonte. A luz do sol refletia nas janelas de vidro e as cortinas encardidas esvoaçavam ao vento. As velhas paredes de tábua há muito pediam uma pintura e liquens forravam a madeira de alto a baixo. O velho telhado parecia que ia desabar a qualquer momento e as persianas do sótão estavam quebradas e escancaradas. Fumaça saia da pequena chaminé em forma de galo no telhado e cheiro de ervas inundou o ambiente assim que ele adentrou a varanda. Uma idosa estava sentada ao lado do velho fogão à lenha, vestida um jeans surrado, uma camiseta do Green Peace e tênis All Star e esboçou um sorriso ao vê-lo. Seu cabelo parecia não ver escova há anos e os dentes estavam amarelos e raleados. A velha chaleira no fogo apitou indicando que a água fervera, no mesmo instante em que a avó se levantou para abraçá-lo.
– Bem vindo filhote. Chegou bem na hora do chá.
Retribuiu o abraço e beijou a pele enrugada do rosto da avó, enquanto reparava nas condições do casebre. Estava muito pior que da última que o vira. A escada para o telhado estava disposta de maneira a escorar as vigas e dos móveis restavam apenas uma velha cama de madeira com lençóis encardidos, uma escrivaninha com alguns produtos de beleza e um espelho grande, um armário antigo repleto de porcelana, uma mesa redonda, algumas banquetas de tronco de carvalho e o fogão a lenha perto da porta.
Sentou-se na banqueta ao lado da mesa e sorriu para a avó.
– E então Madame Mim onde é o incêndio? – a avó sorriu ao lembrar-se da forma como o filho a chamava nas vezes em que ia visitá-la com o neto, numa referência a bruxa velha e gorda, personagem de Walt Disney.
– Não pareço com a Madame Mim. – disse a velha ainda sorrindo – Ela usa vestido e eu não troco meu jeans por nada nesse mundo.
– Parece que a senhora não troca é de jeans por nada nesse mundo. – emendou o rapaz – Há quanto tempo não compra uma roupa nova? – falava em tom de brincadeira, mas estava realmente preocupado com a aparência da avó.
A velha levantou, pegou as louças no armário e sentou novamente se escorando na parede. Seu rosto já não esboçava alegria e o esforço para se movimentar a deixara ofegante.
– Desde que seu pai faleceu não tenho ido muito à cidade. Tenho pensado muito em você, no seu futuro. Seu avô não está mais entre nós e seu pai também já se foi, você agora é o único motivo da minha existência.
Tentou sorrir e disfarçar a vergonha por ter deixado a avó esquecida por tanto tempo e descontraiu.
– Que isso vovó! A senhora ainda é uma coroa enxuta, tem muito que viver. Está mais que na hora de sair um pouco e arrumar um velhinho bacana para dividir o cobertor. Tem uns bailes da 3ª idade que...
– Não meu filho – a velha o interrompeu e lhe serviu uma xícara de chá – Não posso negar meu destino e meu tempo está perto do fim. É por esse motivo que te chamei aqui hoje. Como disse na carta, seu pai nunca quis assumir o legado de seu avô, nunca quis procurar o caminho e tentou ocultar o mago dentro dele, mas a magia sempre encontra formas de se libertar e se manifestou novamente em você. Você é o escolhido. O descendente direto do primeiro e de tantos outros grandes magos do passado que herdaram o legado de Adão.
– Espere aí vovó – disse o rapaz tomando um gole de chá – Eu sei que é muito raro um mago nascer com o meu dom, e que as círculos místicos espalham essa lenda do descendente de Adão, mas a senhora sabe que eu não acredito nessa alegoria bíblica. Adão e Eva, serpente falante, arca de Noé e tudo mais, isso é história para criança – falava com convicção, mas a velha parecia não aceitar a descrença do neto.
– Sei que é difícil acreditar meu filho, mas você precisa me escutar; o movimento já começou; as profecias estão se cumprindo; estamos a cada dia mais perto do fim – ergueu as mãos num gesto exasperado parecendo estar fora de si – Como foi no tempo de Noé será agora também; a destruição, as mortes, o caos...  E só você pode impedir isso meu filho. Você é nossa única esperança agora. Precisa encontrar o caminho para o Jardim e resgatar a Árvore da Vida. Só assim a grande obra poderá ser concluída. Só com o fruto da árvore do jardim é possível criar o Elixir da Vida e dar a humanidade alguma esperança na guerra que está por vir.
Segurou as mãos do neto e as acariciou enquanto seus olhos brilhavam de emoção. O rapaz recolheu as mãos e se arrumou na banqueta.
– Vovó o elixir só pode ser criado com a energia de uma alma. – explicava calmamente como se a avó não pudesse compreender de outra forma – Não há como realizar a troca de outra forma, e essa árvore é uma lenda, um conto, assim como seu fruto imortal. Não há um caminho para o Éden. O vovô morreu por acreditar nisso.
– Não meu querido. – insistiu a avó – Seu avô sabia que existia um caminho, e tenho certeza que ele o descobriu. É por isso que te chamei aqui. Só você pode continuar essa busca, mas precisa se apressar. Seu avô deixou um baú no sótão para seu herdeiro. Era para seu pai, mas agora eu o transfiro para você. Nele você encontrará tudo o que ele coletou e descobriu durante sua jornada em busca do jardim. Ele será sua herança, e a nossa esperança de um mundo sem tirania, onde cada ser humano possa escolher seu destino com base em suas ações e não em um sistema injusto de regras impostas por outrem.
O rapaz terminou o chá e levantou sem saber o que dizer. Tudo aquilo parecia loucura. A avó balançava a cabeça afirmativamente enquanto olhava para ele sorrindo e indicando a escada.
– Vá meu filho, não tenha medo do seu destino. Eu o acompanharia se pudesse, mas não tenho mais idade para subir escadas – escorou-se na mesa e levantou. Retirou um estranho artefato do bolso de trás da calça e o entregou ao neto. Era uma chave grande e muito antiga. Tinha o formato de uma cabeça de cobra e no lugar dos olhos, duas pedras vermelhas contrastavam com o verde do metal e de sua boca pendia uma corrente de prata. Seu corpo tinha a forma de um “S” e no verso, gravado em baixo relevo, algumas inscrições em um idioma desconhecido – A chave do baú – disse a avó ainda sorrindo – Ela tem o formato de Sophia, para guiar seu caminho em sua nova jornada. Um caminho de descobertas, conhecimento e reflexão, que começou com Sophia e com Sophia deve terminar.
Timidamente o rapaz estendeu a mão e pegou a chave fazendo com que seu coração começasse a bater num ritmo acelerado e uma onda de calor percorresse seu corpo. O artefato pulsava, incentivando-o a prosseguir e Adam pode sentir a magia antiga que emanava dele. Aproximou-se desconfiado da velha escada de madeira e começou a subir. O casebre dançava a cada subida e por um momento pensou em desistir antes que tudo viesse abaixo, mas a avó parecia não se importar e o incentivava com um olhar confiante. Lentamente galgou os poucos degraus e adentrou o local. A abertura era apertada e Adam bateu a cabeça na quina ao tentar suspender o corpo e praguejou enquanto seu boné rolava escada abaixo. O sótão estava repleto de teias de aranha que balançavam ao vento e o assoalho, velho e esburacado, parecia que ia ceder a qualquer momento.
Caminhou lentamente observado o lugar. Algumas prateleiras de madeira resistiam ao tempo e davam ao ambiente um ar de biblioteca medieval apesar da sujeira e do mau estado dos livros. No final do salão alojado entre dois armários ficava o velho baú. Era de ferro e possuía três cintas de cobre o circundando. A cinta do meio era mais larga e lembrava uma serpente enrolada. Seu pescoço, mais fino, terminava numa fechadura cromada, mas ao contrário dos modelos comuns que possuem a tranca na parte frontal, a abertura ficava na parte de cima como uma serpente degolada.
Soprou a poeira acumulada há anos e passou a mão levemente sobre o baú. Devia pesar pelo menos uns cinquenta quilos e parecia um milagre que não tivesse desabado pelo assoalho apodrecido durante todos esses anos.
Respirou fundo, encaixou a chave na fechadura e girou. A forma da serpente ficou completa e um clique indicou que a tranca se abrira. Um misto de ansiedade, medo e curiosidade tomou conta do rapaz ao levantar a pesada tampa e contemplar o interior: um tecido vermelho de seda envolvia os objetos e protegia o conteúdo e, quando retirou o pano, pode finalmente ver sua herança. Estendeu a mão e retirou uma versão muito antiga da bíblia com capa de couro e letras em alto relevo. Logo abaixo uma cópia de um velho manuscrito, que ele reconheceu como sendo o Manuscrito Voynich, um tratado alquímico escrito em uma língua desconhecida e indecifrável. Em seguida retirou uma foto de um espelho negro de origem asteca, um mapa rabiscado em um pergaminho e uma carta de seu avô aparentemente endereçada ao filho. Abriu a velha bíblia na página marcada com uma dobra e leu o trecho que fazia referencia ao jardim lendário. A palavra “Hidéquel” estava sublinhada à caneta e logo acima, também escrita à caneta, a palavra “Tigre”, aparentemente indicando que se tratava do rio Tigre que atualmente corta o Iraque.
Fechou a bíblia, guardou-a na mochila e pegou o segundo item; o manuscrito Voynich. Era aparentemente uma cópia, pois sabia que o original estava guardado no museu britânico e não imaginava que o avô tivesse meios de consegui-lo.
Abriu e folheou as velhas páginas reparando no estranho alfabeto. As letras eram uniformes e as palavras não continham espaço, como se fossem escritas seguidamente. Já lera sobre o manuscrito uma vez, quando fazia uma pesquisa ainda no ensino médio, e descobrira que o mesmo havia pertencido ao alquimista e astrólogo John Dee, famoso por colecionar objetos estranhos.
Voltou algumas páginas e analisou as figuras. A maioria retratava plantas exóticas e mulheres grávidas e por um momento ficou tentado a decifrar as inscrições já que era apaixonado por códigos e símbolos antigos, mas preferiu guardá-lo também na mochila e pegar o próximo item; a fotografia do espelho asteca.
Retirou a foto e a examinou cuidadosamente. O espelho parecia feito de um material negro e luzidio, semelhante a mármore e não possuía vidro. Era apenas um pedaço de pedra negra e polida guardado em uma jaula ao lado de outros objetos estranhos e quinquilharias do século XVIII. Adam sabia que o espelho havia sido usado por Dee, para comunicação angelical, e não entendeu o porquê do avô guardar uma foto do artefato.
Guardou a foto do espelho e retirou o pergaminho do baú. Era um mapa feito à mão e mostrava as fozes dos rios Tigre e Eufrates, próximo ao Golfo Pérsico quando os dois rios se encontram. Um círculo acima do golfo marcava um local entre os rios e, no centro, escrito à caneta, a frase “Possível localização do Éden”. Havia mais alguns rabiscos em volta do mapa e, no rodapé, a sigla “J.B.” escrito de forma caprichosa. Parecia que o avô acreditava realmente na história e procurava pelo jardim mitológico.
Enrolou o pergaminho e o depositou junto com os outros artefatos na mochila, retirou o último item, a carta do avô endereçada ao filho. Estava escrita em papel velho e enrolada junto com uma grande pena dourada, possivelmente usada para escrevê-la. Abriu a carta e leu:

Meu querido filho.
Se você está lendo esta carta significa que falhei e não pude completar a missão que me foi incumbida. Quero que saiba que fiz todo o possível para realizá-la com sucesso, mas as forças que confrontei eram terríveis e extraordinárias, e estavam além de minha capacidade. Sendo assim, e com pesar, passo a você a tarefa de concluí-la e torço, de onde estiver, pelo êxito em sua jornada, para que assim, a humanidade possa finalmente ter a liberdade que anseia e merece.
Acredito que a essa altura você já tenha desenvolvido seus dons, mas é importante que saiba como tudo começou. Qual a origem da magia? Por que estamos empenhados nessa incumbência e por que esse legado não nos foi permitido?
Magia é a energia que sustenta o mundo. É a força criadora e destruidora do universo. É onde tudo se inicia e se encerra. As plantas, flores, água, terra, ar, o universo, tudo se originou do maior ritual de magia que se tem conhecimento. Um feito sem precedentes ordenado pelo maior mago de todos os tempos. O ser que conhecemos e versamos como Deus.
Deus é o único ser conhecido com controle total sobre a magia. O único que possui acesso ininterrupto à energia do cosmos e poder para manuseá-la à seu bel prazer. Sim, pois um ritual de magia nada mais é do que uma ponte para tocar a energia do cosmo. Uma forma de abrir uma brecha nos limites da física e por um segundo se tornar pleno, livre e integrado com o cosmos.
Deus não precisa dessa ponte já que não está sujeito às leis do universo. Elas são impostas apenas a nós, mortais, para controlar e ocultar nossa capacidade. Dessa forma, Deus trabalha diretamente com o cosmos num ritual divino, usando sua própria energia como troca e podendo assim, manipular a magia apenas com sua palavra. Gênesis 1-3 exemplifica essa afirmação:

“E disse Deus: Haja luz. E houve luz.”

E dessa forma, se concretizou toda a criação, consumindo durante seis dias, uma quantidade quase inimaginável de energia, e o levando a descansar e repor suas forças no sétimo.
Contudo Deus não simplesmente criou o mundo como o conhecemos, mas os cinco elementos primordiais que dariam origem a todas as coisas existentes. A luz foi o primeiro elemento criado, depois o fogo, o ar, a água e finalmente a terra.
A criação da luz é talvez o mais importante dos rituais, pois define a criação do próprio Deus. Ao criar a luz Ele se autoprojeta: passa de uma simples emanação de poder para algo substancial, ainda que espiritual. Pode-se dizer, paradoxalmente, que a criação da luz define a criação do próprio Deus por ele mesmo, separando seu lado sombrio e o encarcerando na forma inteligente e sagaz de Sophia, mas sem poder e sem liberdade para agir; vivendo à sombra do Todo Poderoso, lhe mostrando seus erros e censurando seus atos.
O segundo elemento daria origem às hostes celestiais, os exércitos dos céus e a força vital dos demais seres. Sendo às vezes incontrolável e impetuoso, mas também quente e aconchegante, o fogo representa um equilíbrio muito tênue entre o bem e o mal.
O ar simboliza a ingenuidade, e é o terceiro elemento. Sendo um elemento de retenção, serve para controlar os seres, selando seus conhecimentos. É o principal instrumento divino para dominar os demais seres, mas, por ser desprovido de prudência, pode se rebelar e se tornar terrível e desastroso. É representado pelo espírito e serviu de componente para a formação da árvore imortal da vida.
O quarto elemento é a água, que serviu de composição para a construção física de todos os seres, sendo seus corpos formados basicamente por água. É o primeiro dos elementos físicos e o mais importante deles.
O quinto e último elemento é a terra, usado principalmente na criação de substancias sólidas. É o segundo elemento físico e serviu de componente para a formação do primeiro homem, sendo esse, no entanto, privado de livre-arbítrio e apenas um peão num jogo de xadrez comandado pelo Criador. Um boneco de barro criado para obedecer e servir.
Desse barro, apenas um lugar ainda mantém sua fórmula original e imaculada. O mesmo lugar onde a sombra se converteu em luz e plantou uma semente de mudança, de saber e de revolta – a árvore do Conhecimento do Bem e do Mal –, gerada da essência de Sophia, para prover o boneco de senso crítico e poder de escolha, se essa fosse sua vontade.
Esses são os cinco elementos celestiais usados por Deus na criação do mundo. Realizando um ritual onde o próprio Ser se entregou como oferenda e sintetizou o maior rito de troca já realizado, dando origem ao universo e tudo que nele existe.

Dessa forma teve início a história da humanidade como a conhecemos. O homem recém-criado rejeitou a soberania do Criador e decidiu seguir seu próprio caminho, pagando um alto preço por sua decisão. Porém seu novo entendimento o levou a uma nova realidade e o preço da eternidade se fez pequeno frente ao novo mundo que se abriu; um mundo de descobertas, conhecimento e liberdade. Onde cada ser humano possa ter a escolha de desafiar o poder de um deus e vencê-lo, e assim decidir, por conta própria, perpetuar sua existência na face da terra.
Essa é a nossa missão; nossa benção e nossa maldição. Pois fomos abençoados com o dom da magia e amaldiçoados com essa tarefa de conquistar meios de enfrentarmos uma guerra contra os céus. Uma guerra predita e eminente, mas que pode ter um desfecho bem diferente do esperado. Só depende de você, meu filho: encontrar o caminho para o jardim, resgatar o fruto da árvore da vida e, através dele, dar à humanidade uma chance de resistência na batalha apocalíptica que se aproxima. Nada escrito está que não possa ser mudado, pois nossos destinos são decididos por nossas escolhas. E nós escolhemos resistir. Esse é o legado que Sophia nos deixou e faremos bom uso dele para o bem da espécie humana.
Eu me despeço com pesar e esperança. Pesar pela dura missão que lhe confio, mas esperança, pois sei que tens os atributos necessários para concluí-la com sucesso.
Que a luz da magia ilumine sua estrada e os círculos de poder o guiem no melhor caminho. Um caminho de esperança, racionalidade, amor e liberdade para todos.

Limpou o suor da testa com a manga da camiseta e passou a mão nos cabelos enquanto se sentava na borda do baú, tentando colocar as ideias em ordem. Não se lembrava precisamente do avô, pois ainda era um bebê na época do seu desaparecimento e toda informação que tinha sobre ele vinha de fotos e relatos dos parentes. Sua mãe dizia que o velho era meio maluco e que o pai nunca dera ouvidos a conversa dele. Mas a magia era real, ele era um prova disso e, apesar de não o ter conhecido pessoalmente, sabia que ele havia sido um grande alquimista, inclusive com canções registradas no livro vermelho. No entanto a história do jardim, do ritual com o fruto imortal e da batalha apocalíptica parecia fugir à realidade, não poderia ser verdade.
Levantou-se, fechou o baú e guardou a chave na mochila, e atravessou o longo corredor até a velha escada, onde parou por um instante sem saber ao certo o que dizer à idosa que o esperava logo abaixo. Sabia que a avó estava ansiosa para saber sua decisão, mas não tinha certeza que podia dar a resposta que ela desejava. Por fim decidiu deixar a avó tomar a iniciativa e desceu.
Como esperado a velhota o esperava no final da escada e sorriu ao vê-lo descer.
– E então filhote, resgatou sua herança? – Adam tentou retribuir o sorriso, mas ainda estava meio perturbado com tudo e apenas balançou a cabeça afirmativamente enquanto descia o último degrau.
Sentiu que sua falta de empolgação frustrou um pouco a avó e tentou remendar.
– Estou meio confuso agora vovó. Preciso pensar um pouco, colocar as ideias em ordem. Depois conversamos com mais calma, pode ser?
– Claro querido – disse a avó abraçando o neto – Pense com calma. Essa é uma decisão muito importante e vai mudar sua vida para sempre, mas lembre-se que nada acontece por acaso e sua escolha pode mudar o destino de toda humanidade.
Consentiu com a cabeça e despediu-se com um beijo, deixando a casa sem olhar para trás.
A avó ainda gritou uma despedida da varanda e o rapaz retribuiu o gesto timidamente enquanto caminhava rapidamente para fora da propriedade.
Passou pela porteira em ruinas e logo alcançou a estrada que dava para a cidade.
A poeira do sótão estava impregnada em suas roupas e cheiro de mofo subia até seu rosto sempre que o vento soprava mais forte, desalinhando seu cabelo e provocando um rebuliço nas longas mechas castanhas que lhe caiam sobre os olhos.
O sol também estava mais quente agora fazendo com que sua camiseta grudasse no corpo devido ao suor e provocasse certo incômodo, aumentando o desconforto e a irritação do rapaz.
Andou alguns metros e parou embaixo de uma árvore frondosa, para tentar organizar os pensamentos e avaliar a situação, mas uma algazarra de insetos que se escondiam do calor e pássaros que saboreavam os frutos maduros e convidavam seus companheiros a participar do banquete, distraiu sua atenção. Quando deu por si, uma música conhecida chegou aos seus ouvidos e um Corolla azul marinho parou ao seu lado, revelando uma garota com cara de anjo. A moça abriu a porta do passageiro e, sorrindo, o convidou a entrar.
– Olá Adam – disse a garota. Seus olhos eram de um azul profundo e sua pele branca e sedosa contrastava com seus longos cabelos negros. Seus seios quase não cabiam no top decotado e a calça justa destacava as curvas bem modeladas – Que sorte encontrá-lo aqui. Entre! Te dou uma carona para casa.
Surpreso pela aparição e mais ainda pelo fato da moça saber o seu nome, Adam entrou no carro e fechou a porta. O automóvel arrancou e tomado pela curiosidade gaguejou ao perguntar.
– D-desculpe, mas de onde me conhece? Não me lembro de já tê-la visto antes – mentiu tentando parecer sincero.
É uma longa história, mas não se preocupe, temos muito tempo para conversar. Meu nome é Rebecca Blue e se estiver com fome podemos almoçar juntos.
– Seria ótimo! – disse Adam se empolgando com o convite – Mas antes tenho que passar em casa para tomar um banho e trocar de roupa. Você gosta de comida chinesa? Conheço um ótimo restaurante perto da faculdade.
A moça apenas sorriu em resposta enquanto erguia o volume do som do carro e a voz melódica de Jon Secada encheu o ambiente no longo trajeto de volta à cidade.


***

2 comentários:

Michel Filipe disse...

Puxa, Feitosa, que capítulo grande, em? Mas incrivelmente interessante. Gostei de como modelou a bíblia a uma nova interpretação para seu universo literário. Ficou coerente, um tanto complexo nos detalhes, mas tudo certinho no lugar. Gostei da escrita e fiquei muito curioso. Seu livro promete muita ação. Gostei muito. Parabéns.

Feitosa disse...

Valeu Michel. Fico feliz que tenha gostado. Meus capítulos são longos mesmo por que gosto de explorar um assunto até o final. Muito obrigado pela leitura e comentário.

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