Emily e Benjamim entraram na grande biblioteca do Círculo Dourado – a sede da organização dos paladinos – e escolheram um livro de uma das prateleiras. Benjamim mostrou a capa, feita de couro preto com detalhes dourados, para a amiga e, após sua aprovação, levou-o para uma das mesinhas que enchiam o salão. Emily o acompanhou pensando se seria uma boa ideia tocar nas velhas feridas dos paladinos. “Contos da Revolução Dourada”, o título do livro escolhido por Benjamim, era uma coletânea de contos escritos por Eliphas Leaf, o bardo, e narrava a disputa entre os membros das famílias Gold e Gilding pelo domínio da Classe dos paladinos. A revolução resultou no rebaixamento dos Golds a condição de Kadoshs – uma categoria inferior na hierarquia das famílias – e mudou a forma como os paladinos distribuíam o poder entre as famílias. Só há pouco tempo, com a ascensão do avô de Benjamim – Jack Gold – à liderança do Círculo, sua linhagem voltou a ser influente.
Benjamim sentou-se, abriu o livro e começou a ler em voz alta.

***

O Curandeiro


Joseph Ice chegou ao acampamento dos Gilding por volta das vinte e duas horas e só o que tinha em mente era deitar e dormir. Passara as últimas doze horas cavalgando no lombo de um velho pangaré ossudo e suas pernas estavam rígidas e doloridas, e não tivera tempo de parar e preparar um ritual de cura. O chamado fora de última hora e os paladinos, famosos por sua impaciência, costumavam ser mais frios que o vento que descia da montanha.
Uma coruja piou do alto de um carvalho quando ele arriou do cavalo e olhou ao redor. As barracas dos outros capitães estavam dispostas por ordem de importância e parecia que o último espaço fora reservado para ele e os seus. Isso não o surpreendeu. Os paladinos eram orgulhosos e não gostavam de demostrar fraqueza, e ter uma Irmandade de druidas em seu exército poderia significar que não confiavam plenamente em suas próprias habilidades.
Desde que fora convidado a se unir a casa Gilding em face às pretensões ambiciosas de seus primos, os Golds, se pôs a pensar se deveria se envolver em um conflito disputado por outra classe. Criara a Irmandade Branca com o objetivo de ajudar as pessoas que não dispunham de condições para contratar médicos ou curandeiros, e não se envolver em disputas por poder em famílias rivais. Mas os Golds representavam uma ameaça maior que qualquer doença ou dificuldade que poderiam enfrentar, pois buscavam a dominação de todos os magos e o controle unificado dos Círculos sob a chancela dourada dos paladinos.
Olhou de relance para seus companheiros. Todos também estavam cansados e só com muito custo conseguiram erguer sua barraca e pavilhão. A Irmandade Branca pensou. Já fomos trinta e três e hoje não passamos de doze. Não era uma vida fácil seguir de acampamento em acampamento, sem garantia de recompensa e, muitas vezes, sendo tratados com desprezo por aqueles que deveriam estar agradecidos. Joseph conhecia muito bem cada um deles. Seu primo Dhanil Mist, de riso fácil e obstinado com uma pedra, que o acompanhava desde o princípio. Eliphas Leaf, um bastardo, nascido Ranger, mas Druida por opção. Suas canções tornavam suportáveis as mazelas do serviço e alegravam os corações cansados ao final das empreitadas. Melícia White, a única mulher dentro da Irmandade. Irritadiça e fumante inveterada, mas dedicada e leal até o fim. E outros que se alistaram há menos tempo: o garoto Jason Frost e seu irmão Edgar. Paul Winter, alegre, mas dominado pela ousadia da juventude. E mais quatro membros de famílias menores: Andrew Moisture, o lento, Ronald Blank, Ronald pequeno Crystal, George Glass, o trincado, e o último, mas não menos importante da lista; seu intendente Marcus Winter, tio de Paul. Marcus era seu braço-direito de longa data, amigo fiel e confidente. Os dois sempre estiveram juntos desde que Joseph o salvou de um encontro com ursos pardos no Canadá, muito antes de fazer os planos para criar a Irmandade.  Desde então, compartilharam uma vida de aventuras e Marcus sempre fez o possível para tornar seus dias melhores, mas agora o intendente se aproximava com certo desgosto no olhar e ele sabia que as notícias não seriam boas.
– Os capitães estão reunidos naquela tenda grande dos Gildings e aguardam sua presença com certa... urgência – disse Marcus de mau humor. Seus cabelos negros e cumpridos esvoaçavam ao vento e o intendente lutava para prende-los num rabo de cavalo. Seu rosto oval e seu corpo bronzeado destoavam da maioria dos druidas, que geralmente eram afilados e loiros, e seus belos olhos negros e profundos lhe conferiam uma aparência tranquilizadora. Estava bem vestido como era próprio de sua posição, com calções e colete de lã branca e um manto cinza azulado preso ao pescoço por um broche de cristal em forma de um floco de neve. – Aposto que vamos ter encrenca pela manhã. – completou indicando o caminho.
Joseph também apostava, mas não queria minar o ânimo de seus companheiros logo no início. Os druidas podiam lutar apesar de serem especialistas em magia de cura, mas evitavam sempre que podiam usar suas canções de ataque por uma questão de ética. A mão que cura não deve ferir era o lema dos nascidos sobre o privilégio da água, no entanto, já houvera casos em que os druidas e a Irmandade Branca tiveram que lançar mão de seus poderes para garantir que seus ideais prevalecessem.
Parou por um instante para avaliar suas roupas. Usava blusa e calça de couro branco estofada com lã, e um manto branco de pele de lobo, onde a cabeça do animal servia como capuz. Tudo empoeirado e cheirando a suor, pensou. O ideal seria se pudesse tomar um banho e pentear seus rebeldes cabelos loiros antes de se apresentar, mas não podia deixar os capitães esperando. Apesar de já ter passado dos quarenta anos e alguns fios de cabelo insistirem em embranquecer, ainda conservava o vigor da juventude e, normalmente, perder algumas horas de sono não seria um grande problema. A longa viagem, porém, minara suas energias e os conselhos de guerra costumavam ser longos e tediosos. 
Uma pequena discussão sobre onde montariam a cozinha chamou a atenção de Joseph enquanto passava pelo centro de seu acampamento recém-montado. Seu primo Dhanil, o mais velho e experiente dos druidas da Irmandade, tentava convencer Melícia a não fumar enquanto cozinhava.
– Não há motivo para discussão – interveio Joseph – Vamos comer com os paladinos no pavilhão que eles montaram no centro. Não precisaremos cozinhar.
– Não me agrada almoçar com esses cu sujos – divagou Marcus como se os demais não estivessem ouvindo – mas pelo menos não precisaremos comer a gororoba da Melícia. Acho que meu estômago não aguenta mais sopa de nabos e carne seca.
– Eu ouvi isso Winter – retrucou Melícia. Seus cabelos curtos e rebeldes, olhos grandes e uma boca pequena e ríspida lhe davam um ar de desleixada, mas a moça era uma das mais disciplinadas companheiras que Joseph tinha. Fumava um cigarro atrás do outro e quando não estava fumando, reclamava que era um porcaria ser a única mulher a fazer parte da Irmandade – Pode comer com os cavalos se não gosta da minha comida, ou com os porcos. – continuou – Combinaria com seu cheiro.
– Há há há! – zombou Marcus se afastando – Aposto que a comida dos porcos tem mais tempero que a sua. Quem a ...
– Chega de discussão – interrompeu Joseph estressado – Não devemos nos atrasar para a reunião.
Marcus engolia as palavras e seguiu seu comandante, enquanto Melícia, irritada, despejava sua sopa nos fundos da barraca. Passaram por várias tendas de outros capitães e, apesar de alguns olhares rancorosos, ninguém se dispôs a perturba-los.  A tenda dos Gildings era a maior do acampamento e parecia feita de ouro. Seu pavilhão, branco e dourado, esvoaçava acima da entrada e dois guardas vestidos de branco e dourado flanqueavam a abertura da barraca.
– Você pode entrar curandeiro. Ele não! – disse um dos guardas apontando negativamente para Marcus, e barraram sua entrada se posicionando à frente do intendente.
– Me espere aqui! – disse Joseph para Marcus – Não deve demorar muito. – Marcus olhou para os guardas e com um muxoxo acendeu um cigarro e foi se sentar embaixo de uma macieira.
Dentro da tenda estava quente e esfumaçado devido ao pequeno braseiro que ardia num canto e lançava faíscas sobre o tapete fino que cobria o chão. Os capitães se olharam e remexeram desconfortavelmente quando o virar entrar e se apresentar. Apenas Salomão Gilding – o atual líder do Círculo Dourado – um idoso calvo, largo de ombros e quadril, o cumprimentou decentemente e o convidou a se sentar.
– Um Druida! – disse um sujeito magro e atarracado que sentava ao lado do ancião do círculo e parecia muito contente com a presença de Joseph – Sei que estão desesperados, mas não imaginava que pediriam ajuda à outra classe? Sabiam que ouvi rumores que os Gold tentaram recrutar os ladinos, mas as demais famílias não aceitaram descer tão baixo e recusaram.
– Todos sabemos a que nível os Gold desceram Sconce. – interrompeu o Ancião com pouca paciência – Seria mais útil se nos relatasse como nossos inimigos pretendem nos atacar pela manhã.
– Hum! – fungou Geazi Sconce se voltando para os demais – É! Vou fazer isso. Vou relatar tudo que descobri enquanto fingia ser um deles. Mas não se esqueçam do meu preço. Quero tudo que me foi prometido.
– Terá o que lhe foi proposto Geazi. – respondeu Albert Shine. Um dos oficiais da vanguarda dos Gilding – Pode ter certeza disso.
Geazi pareceu convencido e começou a contar os planos dos Golds. – Eles dividirão as tropas em dois batalhões de oito pelotões cada e atacarão por ambos os lados da vanguarda de vocês, enquanto uma tropa de kadoshs dá a volta pela retaguarda aproveitando o terreno montanhoso do seu acampamento. – Como era de se esperar, logo após o relatório de Sconce houve um intenso bate boca, comum nos conselhos de guerra, onde cada chefe de família queria expor a melhor maneira de enfrentar o adversário e alcançar a vitória. Joseph se limitou a escutar e só dava sua opinião quando lhe era perguntado.
Saiu do conselho já perto da meia noite e Marcus o esperava impaciente do lado de fora.
– E então – perguntou se aproximando – Quando vamos chutar uns traseiros paladinos?
– Mais cedo do que eu gostaria. – respondeu Joseph pensativo – Vão nos atacar pela manhã, segundo um informante do velho Gilding. Dois batalhões contra a vanguarda e outro atravessando as montanhas pela retaguarda.
Marcus olhou para as colinas que rodeavam o acampamento e fungou.
– Hum! Pode confiar no homem? Parece loucura tentar atacar nossa retaguarda pelas montanhas. Perderiam metade dos homens até terem uma chance de um ataque direto.
Joseph acompanhou seu olhar antes de responder. As montanhas da Áustria formavam um paredão quase intransponível em volta do acampamento e tentar atravessa-las com uma tropa sem ser notado parecia ousado demais para ser verdade.
– Acho que não temos escolha além de confiar – disse por fim com um suspiro – Ainda mais que fomos designados para detê-los. Eu sei – continuo após a expressão surpresa de Marcus – Vamos ter que lutar. Afinal estão nos pagando para isso, mas Shine nos prometeu mais homens. Kadoshs provavelmente.
Marcus não teceu mais comentários até chegar à barraca, mas era notável sua indignação com a decisão do Conselho de manda-los enfrentar os paladinos no campo de batalha. O intendente não era o que se podia chamar de covarde, mas dedicava seu tempo e conhecimento a aprimorar as canções do Livro Branco e seus rituais e o fato de ter que tirar a vida de outro ser humano o desagradava terrivelmente.
– Não vai dormir? – perguntou Joseph quando Marcus fez menção de se encaminhar para o outro lado do acampamento – Amanhã temos que levantar com a aurora e nos preparar para a batalha. Não seria prudente enfrentar os Gold com os olhos em vidro.
Marcus olhou para a confusão no meio do acampamento Gilding, onde um grupo de kadosh cantava e bebia em volta de uma fogueira, e depois para o amigo na entrada de sua tenda e voltou se desculpando.
– Desculpe, eu... não estou com a cabeça muito boa esses dias.
– Não se preocupe... Vai dar tudo certo. – respondeu Joseph confortando-o – Eu também fico ansioso antes de uma batalha, mas no final tudo correrá bem. Você vai ver.
Como Joseph previra, a batalha do dia seguinte foi tranquila. Com as informações passadas por Geasi, os Gildings caíram sobre os Gold como urubus sobre carniça. O ataque à retaguarda, que coube a Irmandade defender, se mostrou fraco e despreparado. Apenas um grupo de aprendizes de famílias menores conseguiu atravessar as montanhas e foram “presa fácil” para os druidas. Joseph chegou a participar da batalha, mas se retirou e passou o comando para Marcus quando viu que não teriam problemas, e foi se juntar aos demais líderes das famílias para planejar o próximo passo. No fim, tinha sido uma batalha fácil. Fácil até demais para Joseph.
Como sempre depois de uma batalha houve um grande banquete de comemoração. Joseph não era de beber, mas acabou por ser convencido, por Marcus e Melícia, que deveria aproveitar a vitória e descontrair um pouco. A dupla o levou até as mesas onde os chefes dos paladinos estavam e o sentaram, meio que na marra, em um dos bancos ao lado de outros comandantes.
Marcus foi se sentar com os demais druidas e Melícia, já meio bêbada, começou a dançar em cima de uma das mesas para o delírio dos demais participantes que gritavam extasiados – DELÍCIA... DELÍCIA... – enquanto a druidisa tentava explicar, inutilmente, que seu nome era Melícia e não delícia como estavam gritando.
 O banquete durou até alta madrugada, mas Joseph se retirou quando percebeu que não enxergava mais os copos de bebida que colocavam à sua frente. Assim, voltou caindo de bêbado para sua barraca e não viu a hora em que Marcus chegou, mas o companheiro estava dormindo ao seu lado quando acordou de madrugada para urinar.
No outro dia a manhã estava bela. O sol brilhava timidamente como uma donzela que se encaminha para sua noite de núpcias, e um fresco vento soprava do alto das montanhas e trazia com ele os odores dos picos nevados. Marcus acordou tarde, perto das nove da manhã e mal se levantou já foi convocado por Joseph para planejar a próxima ação. Inicialmente contaram as baixas e perceberam que nenhum homem da irmandade havia perecido e apenas George Glass, conhecido como o trincado, ganhará uma nova cicatriz para somar as tantas outras que possuía.
Os outros dias correram sem grandes novidades. Antes de cada batalha Geazi aparecia com informações crucias para a formação e movimentação das tropas e, graças a ele os Gold foram recuando cada vez mais para dentro das montanhas e abrindo espaço para o avanço das tropas Gildind.
As últimas batalhas foram um pouco mais duras, com os inimigos entrincheirados e se valendo de guerrilhas para atacar os flancos, mas nada que seus homens não dessem conta. Joseph participou de todas elas, apesar dos protestos de Marcus e de seus companheiros mais chegados para que ficasse de fora. Não achava justo que seus homens sangrassem e corressem riscos enquanto ele permanecia na segurança e no conforto do acampamento.
Nas batalhas mais intensas, sua adaga garantia certa vantagem para os druidas e Joseph a usava sempre que a situação exigia. Era uma arma surreal: sua lâmina de um branco reluzente brilhava como cristal e o cabo transparente lembrava vidro temperado, mas apesar da aparente fragilidade era praticamente impossível quebra-la. Ha encontrara ainda garoto, quando servia o pai numa expedição às ruinas do antigo império babilônico e a tomara como souvenir. Só muito tempo depois descobrira, por acaso, o poder que ela continha.
Apesar das dificuldades dos últimos combates, a guerra parecia perto do fim. Os Gold, outrora orgulhosos, já quase não se gabavam de suas estratégias e pareciam dispostos a aceitar os termos de uma rendição, caso fosse proposta. Salomão Gilding planejava um último ataque ao acampamento inimigo na manhã seguinte e exigiria a rendição dos rebelados, expondo condições de uma rendição nada agradável àquela família.
Enquanto isso no acampamento os ânimos estavam exaltados com a vitória eminente. Jason Frost – um belo rapaz, jovem e cheio de vida e que entrara na Irmandade a pedido de Dhanil – passou ao lado de Joseph e sorriu esperançoso. Apesar das indicações serem comuns, Joseph se perguntou se não havia segundas intenções na escolha precoce do primo.
– Ansioso pela vitória comandante? – perguntou Jason se aproximando – Os homens estão comentando que quando chegarmos ao acampamento Gold os estandartes já estarão arriados. Acredita nisso?
Joseph tentou devolver o sorriso, mas alguma coisa sobre essa última batalha o preocupava.
– Se conseguirmos o fim da guerra amanhã, já ficarei satisfeito Jason. Mas não acredito em rendição imediata. No máximo teremos pouca resistência.
– Verdade comandante! Dhanil pensa a mesma coisa, mas depois da última batalha acho que não sobrou muita energia neles para nos opor resistência. Acredito que teremos uma vitória arrasadora quando o amanhã chegar.
Joseph confirmou com um sorriso e saiu para procurar Marcus tentando tirar o pessimismo da ideia. Jason podia ser meio exaltado, mas era um mago excelente e quando estava com Dhanil formavam uma dupla poderosa. Os dois estavam juntos ha pouco tempo e finalmente tomaram coragem para compartilhar uma tenda, mesmo com as advertências de Joseph para que fossem cautelosos.
Encontrou Marcus fumando embaixo de um pinheiro com Melícia e Geazi e foi informando que o conselho se reuniria em meia hora para definir o ataque final. Ao ser indagado por Melícia da maneira que conseguia as informações e passava para o lado de cá sem levantar suspeitas, Geazi desconversou e disse que esse era seu trabalho e que se não ficaria muito tempo naquele serviço se saísse contando seus segredos para todo mundo.
No horário marcado, Joseph acompanhou Geazi até a barraca dos Gildings para a reunião final. Os demais chefes de família já estavam lá e Geazi começou a repassar as últimas informações sobre a situação do adversário. Os Gold estavam encurralados, com sede e famintos e não resistiriam a um ataque final. Aconselhou Salomão a esperar até depois do almoço, quando uma boa parte da tropa inimiga já teria deserdado e chegar para propor os termos de rendição. Albert Shine como sempre olhava torto para Geazi, mas os demais comandantes ficaram entusiasmados com o fim da guerra e propuseram um banquete para comemorar.
– Sem banquetes – respondeu seriamente Salomão – vamos dormir cedo e nos prepararmos para amanhã. Se Deus nos ajudar poderemos fim a essa disputa de uma vez por todas.
Joseph foi encontrar alguns de seus homens bebendo na barraca de Dhanil e recomendou a todos que fossem deitar, pois no outro dia ocorreria o confronto final. Marcus, Paul, Ronald e Andrew seguiram seu capitão e foram dormir, mas Jason e Melícia resolveram ficar um pouco mais, afinal só atacariam depois do almoço no dia seguinte.
Joseph dormiu rapidamente. Era uma qualidade adquirida nos longos anos de viagens e campanhas. Podia dormir em praticamente qualquer lugar e bastava fechar os olhos para pegar no sono profundamente, porém, ao menor sinal de perigo, acordava desperto como um devoto numa manhã dominical. E o sinal veio na forma de um grito. Melícia, mesmo bêbada, conseguiu dar o alarme e dominar um batedor inimigo, explodindo a barraca de Dhanil em um turbilhão de água e gelo. Mas era tarde. Antes que pudessem saber o que estava acontecendo, os Golds caíram sobre eles. Eram muitos, mais do que alguma vez enfrentaram em batalha e, guiados por Geazi, pegaram as tropas Gildings despreparadas. Joseph pulou da cama, sacou a adaga de debaixo de seu colchão e procurou por Marcus, mas o intendente já havia saído e nesse momento voltava correndo para dentro com o estandarte da irmandade já meio manchado de sangue.
– Um ataque – disse ele ofegante – mataram Jason, e Melícia esta ferida. Têm paladinos surgindo de todos os lugares. O maldito Geazi nos traiu.
Jason, pensou. Como será que Dhanil vai reagir. Mas não teve tempo para mais divagações, pois a guerra chegara até eles e um feixe de luz dourada atravessou a tenda e explodiu, lançado eles, suas roupas, mantimentos e a tenda de encontro a uma pequena árvore que cedeu ao ataque e se partiu.
 Do lado de fora o caos era total. Tendas voavam e explodiam em feixes de luz, iluminando a noite como se sol descesse a terra vestido com as cores do arco-íris. As famílias aliadas tentavam se reagrupar, mas o inimigo chegava em grande número e destroçava as falanges que se formavam, obrigando os druidas a socorrerem os mais feridos, enquanto o velho Gilding amaldiçoava Geazi e prometia que o faria pagar.
– Há há há! –– zombou Geazi em resposta – Os descendeste de Samyaza não podem perder,mo o alarme e ia pessimismo da mente velho. Somos os herdeiros dos antigos nefilins e temos o legítimo direito de dominar o mundo como já dominamos outrora. A vocês, perdedores; só resta a morte.
As canções eram entoadas em meio à confusão e só o que se ouvia eram os gritos dos feridos e o som das explosões que se seguiam cada vez mais intensas. Joseph tentou se levantar, apoiando-se na árvore, mas suas pernas tremeram e sangue escorreu por sua clavícula quando se esforçou para se por em pé. Marcus que estava menos ferido correu para ajuda-lo, mas um feixe de luz dourada o atingiu no peito, lançando-o por sobre o que restava da árvore destroçada.
Joseph gritou. Não era um grito de dor, mas uma forma de extravasar seus sentimentos friamente contidos até aquele momento. Marcus não podia morrer. Não agora e não desse jeito.
Levantou-se da melhor maneira possível e se aproximou ofegante. Marcus golfava sangue e seu peito estava em carne viva, mas ainda respirava. Poderia fazer um ritual, mas levaria tempo e ele tinha a adaga, e não havia situação melhor para usa-la.
Sacou a lamina reluzente de sua bainha e foi como se uma pequena estrela brilhasse entre os dois. A adaga era fria, mas brilhava como o sol de verão, e bastava uma pequena incisão para cura-lo. Ergueu o rosto de Marcus e o abraçou calorosamente enquanto tentava golpear o peito dilacerado de seu amigo. No entanto não chegou a baixar a lamina completamente, pois um paladino vestido com as cores dos Gold golpeou seu braço com aço afiado, lançando-o, juntamente com a adaga para o meio da confusão. No primeiro momento não sentiu a dor, apenas consternação e descrença pelo que viu. Só depois, ao ver o sangue espirrar da ferida aberta e o paladino erguer novamente a lamina para desferir o golpe final que a conclusão chegou para ele. Tudo aconteceu muito rápido: a dor, o sentimento de impotência por não conseguir salvar Marcus.  Seu último pensamento foi para a estranheza da situação. Um paladino armado. Não... Não é comum. Antigamente sim, mas agora... Marcus... E desmaiou.
Acordou numa caverna escura e fria. Alguns homens dos Gildings aqueciam-se em frente a uma fogueira, mas a maioria estava deitada sobre leitos improvisados, gemendo e resmungando. Alguns de seus companheiros também estavam deitados, enquanto outros o rodeavam com expressões de angustia e medo. Foi seu primo Dhanil quem quebrou o silêncio.
– Achamos que ia morrer. – disse angustiado – Melícia estancou o sangramento, mas você perdeu muito sangue. Consegue se levantar?
– Onde estamos? – perguntou Joseph tentando se sentar – e como não fui morto pelo paladino armado?
– Eliphas o matou com o alaúde. – respondeu Melícia examinando seu braço mais uma vez – Paralisou-o com uma canção sinistra e lhe decepou a cabeça com a parte afiada.
O Alaúde de Eliphas era uma coisa monstruosa. Era todo de ferro negro e madeira de lei e tinha um lado afiado como navalha enquanto o restante lembrava uma pata de urso. Servia tanto para tocar quanto para cortar coisas e o bardo raramente usava a parte afiada, exceto quando queria descascar uma fruta.
– E Marcus? Onde está? Eu... eu ia ajuda-lo, mas... recebi o golpe. Ele esta bem?
Todos se entreolharam e Joseph soube qual seria a resposta.
– Ele... não sobreviveu – lamentou-se Dhanil. – Não conseguimos salva-lo. Sinto muito Joseph.
Não! Pensou Joseph. A dor que o transpassou foi pior que a da perda do braço. Não era física, mas afligia seu coração mais que a perda de um membro. Sentiu um nó na garganta e não pode impedir que as lágrimas chegassem aos seus olhos. Levantou o braço restante e cobriu o rosto para que seus companheiros não o vissem chorar, mas não pode sufocar o soluço.
– Joseph! – continuou Dhanil com pesar – Precisamos sair daqui. Os Gold estão vindo e nós não temos como enfrentá-los. Dois terços de nossas tropas morreram no ataque e o restante esta moribundo. Da irmandade – parou um pouco e olhou ao redor para os amigos que restaram e suspirou – da irmandade sobramos apenas nós seis: eu, você, Eliphas, Melícia, Edgar Frost e Paul Winter. E Paul está tão machucado que pode ser que não sobreviva há mais uma batalha. Edgar e Melícia também estão feridos, mas com menos gravidade.
– E por que não estão curando a todos? – disse Joseph limpando as lágrimas e se escorando na parede da caverna para se levantar – Precisamos nos preparar. Precisamos curar todos e surpreender aqueles malditos quando chegarem até aqui.
– Nós estamos tentando! – respondeu Eliphas se aproximando com seu alaúde laminado nas mãos – Mas estamos cansados, fracos e com fome. Não temos energia suficiente para curar nem a metade dos feridos até os Golds chegarem até nós.
– Vamos curar todos. – respondeu Joseph suspirando de dor – Só precisamos de uma oferenda adequada.
– Esse é outro problema – interrompeu Melícia. Sua perna esquerda estava enfaixada até a parte superior da coxa e ela andava com dificuldade. – Não temos nada para ofertar. Perdemos quase tudo no acampamento.
– Temos nossas vidas. – interveio Edgar Frost. Seu irmão havia morrido na batalha e o garoto ansiava por vingança – Não me importo de oferecer a minha se for para acabar com aqueles desgraçados. Eu me ofereço como sacrifício.
– Não diga besteiras Frost – repreendeu Melícia acendendo um cigarro – Se oferecermos uma vida humana o círculo nos amaldiçoaria. Sabe disso. Talvez um pouco de sangue de cada um, mas não sei se será suficiente.
– Qual é a coisa mais importante para um mago? – perguntou Dhanil de repente. Ninguém soube responder de imediato e então ele continuou – A magia! Essa é a maior oferenda que podemos fazer e ela há de servir. Faremos o maior ritual de cura jamais realizado e teremos uma surpresinha quando os Gold chegarem aqui. Vai funcionar. Eu sei.
Joseph se interpôs.
– O círculo nunca devolve o que lhe é ofertado. Nossa classe pode ser extinta se fizermos isso.
– Apenas do lado masculino – interveio Edgar – As druidisas podem continuar de onde paramos e – suspirou – nunca houve muitos druidas mesmo, você sabe disso. A grande maioria é mulher, e nós... nós somos exceção.
– Não se esqueçam de mim – ralhou Melícia soltando uma baforada no meio do círculo de druidas em volta de Joseph – Não há druidas do sexo masculino na minha família. Os White seriam extintos após o ritual.
– Você pode ficar de fora se quiser – retrucou Paul levantando a cabeça e participando da conversa pela primeira vez – Eu estou de acordo. Vamos fazer.
– Está pra nascer o homem que me deixará de fora do maior ritual de cura já realizado. Eu participarei. Foda-se minha família.
Joseph teve de rir. Sabia que o preço seria enorme, mas quanto maior o ritual, maior seria o preço a pagar e ele devia aquilo a Marcus. – Muito bem. Eu estou de acordo. Vamos fazer o ritual. Mas um de nós deve ficar de fora para garantir que haja pelo menos um druida em condições para ajudar os feridos quando isso terminar.
Todos concordaram e ao tirar a sorte, caiu sobre Eliphas. O bardo tocou uma nota de lamento e se retirou para ajudar os demais, reclamando que a sorte só caíra sobre ele porque era um bastardo.
Os demais desenharam, com um pedaço de gesso, um círculo branco no chão e, dentro dele uma estrela de cinco pontas. Cada membro de uma família se posicionou sentado sobre uma ponta: Joseph, Dhanil ao seu lado, depois Edgar, Paul, que veio meio arrastado até seu lugar e Melícia. Fecharam os olhos e exclamaram ao mesmo tempo.

XCVIII CANÇÃO DO LIVRO BRANCO

E abriram os olhos. Suas pupilas desapareceram e as íris estavam brancas como vidro leitoso, confundindo-se com o branco dos olhos. O círculo emitiu um tênue brilho ansioso, que subiu como um escudo protetor envolvendo o círculo e todos que estavam sobre ele, quando Dhanil iniciou o canto.

Falsa amizade, perfídia final;
Estrela brilhante, contorno cabal.
Círculo branco, acaso maldito;
Vitória completa. Eu requisito!

E fechou os olhos e ergueu as mãos enquanto o brilho que estava em volta dos círculos se comprimiu sobre ele e o envolveu ternamente. Quando a luz voltou para o centro do círculo Edgar continuou.

Magia sedenta, vindouro castrado;
Oferta servida, retorno esperado.
Canção derradeira, agora recito;
Fim da jornada. Eu requisito!

E repetiu o ato de Dhanil e passou a vez para Paul, quando o brilho o deixou.

Lágrimas correm, de olhos cansados;
Perdas extremas, destinos salgados.
Barganha efetiva, futuro reescrito;
Angústia cessada. Eu requisito!

E mais uma vez o brilho o envolveu e o deixou e Melícia continuou

Luzes e pedra, folhas e vento;
Círculo Branco, feliz tratamento.
Feridas tratadas, por mãos de perito;
Vigor devoluto. Eu requisito!

Também ela foi envolvida e abandonada e Joseph conclui o canto com a estrofe final.

Alma terrena, desejo mortal;
Vidas perdidas, descanso final.
Abrigo seguro, alcance irrestrito;
Cura suprema. Eu requisito!

O círculo se apagou e por um momento todos acharam que o ritual havia falhado, mas então ele explodiu. Milhares de luzes de todas as cores jorraram do pentagrama e envolveram os druidas, que fecharam os olhos e se deixaram envolver pela magia. Os paladinos que podiam andar vieram ver o que estava acontecendo e também foram tomados pela luz, que percorria seus corpos, curando as feridas e restaurando os tecidos danificados. Ao poucos foi se retirando também para o fundo da caverna, atingindo e restaurando todos que ali se encontravam. Os druidas permaneceram onde estavam até que o último resquício de luz se foi e apenas a fogueira impediu que as trevas de fora tomassem completamente a caverna, e então caíram inconscientes sobre o círculo que lhes roubara a magia.
O dia seguinte acordou com o som das tropas paladinas dos Gold se aproximando. Ao longe, na entrada de uma caverna, cinco druidas esperavam de pé, envolvidos pelo vento matutino que lambia seus cabelos e acariciava suas faces resolutas. Os Gold os avistaram e soltaram gritos de exaltação e escarnio. Sabiam que as forças Gilding estavam moribundas e seria uma vitória fácil. Mas então um bardo surgiu atrás deles segurando um estranho alaúde de metal, e depois Salomão Gilding e Albert Shine, e uma multidão de paladinos que ocupou toda a entrada da caverna. Os Gold pararam, assustados e surpresos. E então, os Gilding caíram sobre eles.

***

– Acaba assim? – perguntou Emily – E o que houve com Joseph, Dhanil e os outros?
– Morreram – respondeu Benjamim fechando o livro e levando-o para a estante – dos seis druidas restantes apenas Melícia e o bardo Eliphas sobreviveram. Dizem que todos lutaram bravamente com o que tinham em mãos, mas não tiveram chance contra a magia divina dos paladinos. No fim os Gilding venceram e minha família foi rebaixada como você sabe, mas a classe dos paladinos nunca mais foi a mesma. Hoje não se permite que apenas uma família esteja no poder. É lei que haja o rodízio. No final foi bom, pois permitiu que voltássemos à liderança do Círculo depois de tanto tempo e ascendêssemos aos nossos antigos postos. Meu avô diz que isso só foi possível porque os Gilding não guardaram mágoa e perdoaram nossa rebelião, mas há muito que não foi dito aqui. Essa foi apenas uma batalha e o conto foi escrito na visão dos druidas e... por um bardo.
– Esse bardo... É o mesmo que sobreviveu a batalha da entrada da caverna? – perguntou Emily se levantando também e se dirigindo a saída da biblioteca com Benjamim.
– O próprio! Eliphas Leaf se tornou famoso pelas canções que compôs sobre as batalhas da Revolução Dourada, mas esse conto ele escreveu quando já estava velho, perto de morrer e meio caduco, pelo que dizem, então ele diverge bastante das canções. É mais real, porém.
– Então como você sabe se ele não inventou essa história para fazer parecer que os amigos dele morreram como heróis? No fim pode ser tudo invenção.
– Toda história tem um fundo de verdade – respondeu Benjamim – e a prova é que todos os druidas daquela época em diante são mulheres, menos os da família White, mas os White... bom, isso já é outra história.





Fim

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